Monday, December 31, 2007

Ano Novo

Brancas margaridas
hoje, outra cor não podia ser.

Brancas margaridas
hoje, trouxe-as na mão direita.

Brancas margaridas
hoje, especialmente hoje
tinham de ser estas e não outras.

Brancas margaridas
para receber o Ano Novo.


- Maggs -

"It's all about connections..."

O meu Honda Civic - ano de colheita: 1998

No dia 20 de Novembro de 2007, tornei-me proprietária de um Honda Civic. Nos quatro dias que andámos juntos, provavelmente, ele viveu mais emoções do que nos nove anos de convivência com o dono anterior. E algo me diz que ele se sente bem confortável e seguro na garagem, não ansiando pela minha chegada.
No dia 1 de Dezembro, logo cedo fomos ao stand de automóveis colocar a matrícula definitiva. Saímos de lá, orgulhosos, no mínimo. Após um pequeno-almoço no café Caribou (com internet grátis, visto ainda não ter internet em casa), fomos ao supermercado e regressámos a casa. Depois do almoço, fomos ao centro comercial porque precisava de chaves de fenda para montar uma mesa. Quando saí do centro comercial e aproximei-me dele, notei que o pneu dianteiro do lado direito estava nitidamente em baixo. Bem devagarinho, regressámos a casa e telefonei ao meu amigo Said - o Said é um taxista que me "adoptou" porque ele sabe o que é "estar em terra estranha sozinho".
O Said, muito prestável, disse-me para não me preocupar que em meia-hora estaria em minha casa e que me arranjaria "pneus baratos e bons". Quando apareceu, olhou para o pneu e disse que ele estava em bom estado, apesar de estar em baixo, e que iríamos até à garagem de um amigo dele. Decidimos que iríamos no meu carro, com ele conduzindo. Só sei que enquanto eu procuro cumprir os limites de velocidade... com ele, foi coisa que não se viu. Pneu em baixo? Não foi limitação para a sua condução até à garagem.
Após inspeccionarem os pneus todos, tiraram o pneu com problemas e descobriram um prego. Enquanto mudavam o pneu, Said decidiu investigar a qualidade do motor do meu carro em segunda mão e dar-me uma aula sobre como ver quando o óleo devia ser mudado, etc etc. Após a sessão de esclarecimento, Said ao fechar o capô do carro, esqueceu-se do gancho que o prendia e ... partiu o gancho como também o capô do carro ficou com uma grande amolgadela, não se conseguindo fechar.
Nervoso e muito chateado consigo próprio, Said, de origem árabe, falou-me de um ditado da sua cultura que diz que ao nos empenharmos muito a delinear o contorno dos olhos com o lápis (khôl), corremos o risco de borrarmos a pintura. Era como ele se sentia. Tanto esforço em ajudar-me que já me estava a dar prejuízo. Mas disse-me logo: "não te preocupes que tenho outro amigo que tem uma oficina que faz arranjos aos carros!" Telefonou ao amigo mas já eram quase 16h de um Sábado e a oficina já estava fechada. Mas para não me preocupar que ele tinha outro amigo e que iríamos a casa dele. Disse-me que eram pessoas que ele também já tinha ajudado e que era muito importante ter esta rede de contactos. Lá fomos nós no meu Honda Civic até à casa do amigo. Consertaram-me o capô e ele, descontraído novamente, insistiu que deveríamos ir a um café árabe para compensar pela tarde "azarada". Lá fomos ao café Sindbad - bebi um chá de menta e Said fumou o seu narguilé.
Conheci o Said quando, no dia 21 de Outubro, pedi na recepção do hotel onde estava alojada um táxi para me levar ao aeroporto internacional de Detroit, de regresso a Omaha. Em Novembro e Dezembro, no espaço de uma semana, Said levou-me ao aeroporto três vezes e foi buscar-me uma vez. Num total de cinco viagens, para além de termos estado sempre à conversa, assisti a episódios de vida singulares que me fizeram sentir que para além de ele ser "a good connection", é um amigo neste processo de adaptação ao american way of living.
Em Outubro, ao entrar no carro, vi uma menina de cinco anos, sentada no lugar da frente. Said explicou-me que a filha estava de castigo, i.e. se ela tivesse ficado em casa, estaria a ver televisão e o castigo era não ver televisão. O Said é um conversador nato, por isso, falou-me das suas origens, que praticou futebol profissional na Europa e que vivia nos Estados Unidos há quinze anos. Ao chegarmos ao aeroporto, deu-me o seu cartão e que não hesitasse em entrar em contacto com ele, quando regressasse a Dearborn/Detroit.
No dia 21 de Novembro, telefonei-lhe para me levar ao aeroporto. Nesse dia, chovia torrencialmente em Dearborn e quando o Said chegou, notei uma jovem sentada no lugar da frente. Pensei logo: "deve ser a filha mais velha. Estará de castigo?" Mas não. Ao chegar ao complexo residencial onde aluguei a casa, ele viu a jovem, de nome Djamila, a caminhar à chuva e com um garrafão na mão. O carro da Djamila tinha ficado sem gasolina e Said tinha-se disponibilizado para levá-la a um posto de gasolina que ficasse perto. A jovem agradecia-nos a amabilidade porque actualmente é cada vez mais difícil prestarmos ajuda a estranhos - sim, de facto, éramos três estranhos num Lincoln, com a chuva torrencial a separar-nos do resto do mundo.
No dia 26, o Said foi buscar-me ao aeroporto. Disse-me baixinho, mal me viu: "Tenho aqui outra cliente que pode ser um excelente contacto para ti. Fala com ela durante a viagem até Dearborn." Nesse fim de tarde, o Said tinha três clientes: um engenheiro turco a viver na Alemanha e que iria trabalhar uma semana na Ford; a Nancy, uma cliente do Said desde há três anos e que trabalha em Detroit e eu. Enquanto o Said e o engenheiro falavam sobre Dearborn e Detroit, nos lugares dianteiros, a Nancy e eu iniciámos também uma interessante conversa. Por ser da costa leste americana, indicou-me os melhores locais para comprar peixe fresco em Dearborn - e isso não é um excelente contacto?

Saturday, December 29, 2007

Partilha

Cozinha do apartamento no Museu Casa Milà, projectado por Gaudí (Barcelona, Dez.-07)


Para a Miss Curls, pelo energy boost



À mesa, partilhámos
a vida, já vivida.
Os sonhos, ainda
por viver,
por partilhar.

À mesa, sonhámos
a vida, por viver,
os sorrisos, por partilhar.

À mesa, sorrimos
pela partilha sentida,
pela vida, já vivida.


- Maggs -

Perguntar ao verbo

O professor Manso Gigante foi o meu professor de Português no 8.º e 9.º anos, no Externato Júlio César, na Pontinha. Na minha memória, a sua postura distinta e um sorriso sarcástico nos lábios. Quando ele foi meu professor, já tinha atingido uma idade que justificava o sorriso zombeteiro, quase constante, nos lábios.
No Externato, os alunos esperavam pelo professor na sala, de pé, e só se sentavam depois da indicação do professor. Por isso, lembro-me do professor Manso Gigante a entrar na sala de aulas, de fato, com um exemplar da obra em análise, o livro dos sumários e um caderno pessoal. Ficava sentado a aula inteira, com os dedos entrelaçados sobre a mesa, olhar penetrante.
Nesses dois anos, a língua portuguesa deve ter sido a disciplina mais estudada por mim porque cada aula era um autêntico exame - era exposta à turma, praticamente em todas as aulas. Aprendi a desnudar as frases, perguntando ao verbo: "o quê? a quem?" para saber os complementos directo e indirecto. Aprendi a dialogar com a gramática, a descobrir os sentidos escondidos em paragráfos, inicialmente, herméticos para mim. Igualmente, aprendi que as minhas fronteiras pessoais podiam ser renovadas todos os dias, podiam ser redesenhadas e aumentadas todos os dias - um exemplo do que deve ser um excelente pedagogo.
A expressão "desaguar à Fragoso" era proferida por ele sempre que chegava a minha vez de responder a uma pergunta que alguns alunos não tinham conseguido responder. A procura da resposta correcta era feita chamando os alunos por ordem alfabética, por isso, quando se aproximava da letra 'M', eu sentia que o meu nível de adrenalina aumentava. Por vezes, não soube a resposta e ele com um sorriso irónico tentava espicaçar-me fazendo-me sentir mal por não saber a resposta. O seu objectivo nunca foi o de humilhar-me mas sim fazer-me ultrapassar os meus próprios limites e por mim mesma.
Penso amiúde no professor Manso Gigante. O seu olhar acutilante, o seu sorriso e a sua forma de falar acompanham-me ainda hoje porque nunca duvidei que ele me estivesse a ajudar a ultrapassar os meus próprios limites. Os professores marcam-nos para a vida. Guardo excelentes recordações de muitos professores mas muito especialmente do professor Manso Gigante.

Pacífico, meu tormento...

Ao desembarcar no cais, não podia, não queria acreditar no que estava vendo.
Homens armados, com o olhar de quem sabe o que está a fazer, sem, na verdade, o saber. Mal recebem uma notificação, dizendo que precisavam defender a pátria, lá se iam orgulhosos...
Chamo-me John. Sou jornalista do jornal americano Sun e, neste momento, sou correspondente de guerra no Pacífico. Meu Deus, se os trouxesse aqui para verem no que se transformou Hong-Kong... Talvez não acreditassem!
Numa cidade sinistra, onde as barricadas impõem a sua trágica presença! Onde estão os gritos, a algazarra feliz das crianças?!
Numa palavra ou expressão, onde está a beleza que tanto apreciei há 5 anos quando vim fazer a minha primeira reportagem no Oriente?...
Hong-Kong, colónia britânica, no seio da 2ª Guerra Mundial, servindo de joguete entre potências que, por um lado querem subjugá-la e anexá-la a um grande império, o Japão, e, por outro lado, pretendem mantê-la como uma colónia importante no comércio e tráfico de especiarias do Oriente, a Inglaterra.
Aproximo-me dos correios. Talvez haja algum telegrama para mim.
Quando abro a porta e penetro no edifício, depara-se-me o encarregado dos correios, falando da Guerra que assolava o seu querido Oriente a um senhor de idade que talvez tivesse aparecido lá em busca dum abrigo para a noite que, lúgubre, se aproximava.
O relógio marca 7 horas. Mais um dia se passou. E falando num chinês fluente, inquiri:
- Há algum telegrama para mim? O meu nome é John Madigan.
- Há sim. Agora com a guerra só recebemos telegramas para os oficiais. Acaso é o senhor algum oficial disfarçado?
- Não, não sou. - Porém, como me queria livrar o mais depressa desse homem, num ápice, tirei-lhe o telegrama das mãos e fui-me embora, saindo a correr.
A rua estava quase deserta.
Daqui a pouco começaria a ronda e, por isso, precisava encontrar sem tardar, um alojamento.
Foi fácil. Hong-Kong deixou de ser visitado por turistas, mas sim por mercenários e assassinos que preferem o anonimato, dormindo em cabarés ou outro tipo de esconderijo.
O quarto era do mais miserável. Uma cama velha, uma bacia e uma ventoínha avariada, constituiam o seu recheio e mobiliário.
Sem pressa, abri o telegrama:
"Japoneses aproximam-se
Atacam 25/12/41
Boa sorte"
Amanhã é 25 de Dezembro!
Malditos! Tanta fome de vencer que nem esperam mais um dia para se saciarem!
Tive um pesadelo. Sonhei com o meu Natal do ano passado. Passei-o com os meus pais e irmãos. Brinquei muito com o meu sobrinho John. Tem 4 anos. Muito inteligente. Ele estava num deserto, sozinho, sem ninguém, mas estava a brincar com o carrinho que lhe dei, feliz. Sim, brincava com uma felicidade enorme! Mas eu intimamente queria que ele saísse dali, pois os japoneses se aproximavam. Gritei. Nenhum som saíu. Estava sufocado. Não conseguia fazer ecoar o meu gritar! E ele, indiferente, continuava entretido e entregue na sua brincadeira. Cada vez mais aumentava a minha aflição, pois os japoneses aproximavam-se assustadoramente.
De repente, o barulho das bombas a cair, a explosão.
- John, John. Por favor, responde-me. Acordei molhado de suor. E sem haver tréguas outra e outra explosão. Levantei-me, aproximei-me da janela e vi... Meu Deus! O que os meus olhos vêm! Mulheres e crianças a gritar desesperadas. Casas a arder. Animais fugindo, cujos ganidos pareciam dizer: "Vocês não têm consciência do mal que estão a provocar."
Gritei alto e chorei. Sim, chorei como não chorava desde criança. De raiva. Sem dúvida nenhuma, eu era uma criança. Talvez, por isso, não atingia o motivo pelo qual os homens lutam, matam-se e só para poderem, quiçá, no fundo dizer "Tenho poder".
Vesti-me e saí a correr como um louco. Tinha uma máquina fotográfica. Tirei fotografias das crianças abandonadas a chorar, de animais mortos com os olhos voltados para o céu, parecendo implorar a Deus como último recurso.
Hoje 25 de Dezembro de 1941, nasce Jesus e morrem crianças e animais...
Para quê? Porquê? Simplesmente não sei...
O ataque terminara. A minha vida terminara, neste instante. Prometi a mim mesmo que ao voltar para a América, escreveria o artigo da maneira como vi o ataque, sem subtilezas. Fotos mostrando o sofrimento e desespero dos que não tinham nada com a Guerra, ilustrariam a reportagem. E abandonaria a minha carreira. Podia trabalhar na loja do meu pai.
Não voltei ao hotel, não suportaria mais. Fui ao cais e comprei o bilhete para Xangai. De lá voltaria de avião, via Paris, para a América.
Senti e ouvi os japoneses a entrarem em Hong-Kong enquanto entrava no barco que me levaria a Xangai.
Sentia-me só e melancólico. Não queria acreditar que no dia de Natal os japoneses tivessem combatido. Não souberam respeitar o nascimento de Jesus. E ele viera espalhar pelo mundo a fraternidade e solidariedade humana.
São cristãos os japoneses? - perguntei-me.
Não soube responder. A minha mente estava bloqueada e eu só queria chegar ao aconchego da casa dos meus pais o mais rapidamente possível, antes do fim de ano.
Talvez conseguisse afastar do meu espírito esse insólito pesadelo e readquirir a confiança na vida. E quem sabe nos próprios homens apesar do que assisti, infelizmente...
- Margarida Fragoso, 9.º ano, Externato Júlio César, 1986 -
_______________
Quando o professor Manso Gigante pediu aos alunos do 9.º ano que escrevessem um conto de Natal para um concurso, decidi que iria escrever algo sobre a guerra e que procuraria um local que tivesse sido invadido no dia 25 de Dezembro. Porquê o jornalista americano? Bem, achei que seria pouco provável um jornalista português em Hong-Kong nessa altura.

Tuesday, December 25, 2007

Guardião

Pórtico da propriedade Guell, projectada por Gaudí (Barcelona, Dez.-07)


Na imponência do dragão,
o reflexo dos teus receios.
Algoz, guardião,
na medida dos teus arrojos.

Para lá do pórtico,
guardião da tua essência,
- acaso oprimam a tua alma.
guardião da tua liberdade,
- porventura te enclausurem.


Guardião, nunca carrasco!


- Maggs -

Festim

Cozinha do apartamento no Museu Casa Milà, projectado por Gaudí (Barcelona, Dez.-07)

O fogão, cozinhando os sabores.
O cheiro, conquistando os espaços.
O calor, aquecendo os corações.

O festim, a alegria do reencontro.


- Maggs -

Monday, December 24, 2007

Regaço

Os meus braços, as tuas muralhas.
O meu peito, o teu castelo.
O meu regaço, o teu refúgio.
- confessou-me o teu olhar.

Os nossos desencontros, a nossa reunião.
Os nossos receios, a nossa audácia.
Os nossos adiamentos, a nossa ocasião.
- revelou-me o teu sorriso.

"Meu amor, estou aqui.
Há refúgio no meu regaço".
- a tua voz, no meu sonho de ontem.


- Maggs -

Tempos difíceis

Violentando o íntimo.
Descaracterizando a natureza.
Desacreditando os ideais.

Lágrimas, deslizando,
morrendo nos lábios hirtos,
deixando um sabor amargo na boca.
Olhar baço, mãos inertes, ombros recolhidos.

Foram tempos difíceis.
Perdi-me, mas encontrei-me,
na desarrumação das emoções.

Perdi-te, ainda não te encontrei.



- Maggs -

(Omaha, 10 de Novembro de 2007)

Entardecer

No entardecer deste amor,
não quero falar de amor.

Ao longe, observo-me.
Sentada, abraçando-me,
não podendo falar de amor.

As minhas mãos, vazias.
Os meus olhos, secos.
Em mim, a incredulidade,
não conseguindo falar de amor.

No entardecer deste amor,
quero dizer-te que quero falar de amor novamente.



- Maggs -

(Omaha, 10 de Novembro de 2007)

Recanto

Já te falei
daquele recanto
onde tudo é possível?

Basta acreditares em ti.



- Maggs -

(Omaha, 10 de Novembro de 2007
publicado no Jornal Artiletra, Nov.-Dez. 2007)

Monday, December 17, 2007

Vozes

De mansinho,
vem para junto de mim.
Por este caminho,
tenta não causar distúrbios.
Não vamos desassossegar
as outras vozes
- que te desassossegam -.


Acredita no que te digo
- não no que as outras vozes te dizem -.

Não tenhas receio de voar.


- Maggs -

Sunday, November 18, 2007

Choro silencioso

- Porque choras?
As lágrimas deslizavam suavemente pela face. Não era um choro convulsivo. Na verdade, nem sentia que estivesse a chorar. As lágrimas caíam, discretamente, desaguando nos lábios, deixando-lhe com um sabor a mar na boca.
- Porque me afastas de ti?
Recostou-se no sofá, abraçando-se. Como explicar-lhe que a vida tinha-lhe ensinado a apoiar-se em si própria? Como dizer-lhe que sabia que cada pessoa era um mundo e que, provavelmente, quando verdadeiramente precisasse ouvir uma voz amiga, essa voz não surgiria. Abriu os olhos, sorriu e disse:
- Estou bem. Não estou a chorar. São lágrimas de apaziguamento.
O encanto acabou. Estava sozinha na sala. Limpou as lágrimas com as mãos e levantou-se decidida. Caminhou até à janela e ficou a observar as árvores. "O Inverno está a chegar." pensou. "Vou sentir saudades de ver estas árvores com flores, cheias de vida. Agora é o tempo do recolhimento".
O telefone tocou. Era uma voz amiga.
- Maggs -

Friday, November 16, 2007

À procura

Sôfrega, procuro na multidão,
não um rosto conhecido
não um sorriso cúmplice
não um olhar compreensivo
mas vestígios da solidão que em mim vivem.

Talvez, assim...
não me sinta só, com a solidão por companhia.


- Maggs -

Opções

Mergulhada nas profundezas,
é onde quero permanecer.
A superfície, não me bastando.

Para além do que a vista alcança,
é onde quero perscrutar.
A proximidade, não me saciando.

Em transformação permanente,
é como quero viver.


- Maggs -

Saturday, November 10, 2007

Antecipação dos rituais de celebração

Desde que aqui cheguei tento manter-me a par dos "rituais de celebração" mas torna-se difícil acompanhar o ritmo americano. Consigo depreender a vinda de um ritual de celebração através dos objectos colocados na montra de uma das lojas dos amigos do hospital, que fica mesmo ao lado do elevador que me leva ao departamento de radioterapia.
Ainda o Inverno se encontrava bem instalado e sem vontade de ceder à Primavera, a montra mostrava-me objectos alusivos à chegada da estação das flores. Em particular, uma tabuleta de cores bonitas com a seguinte frase: "A Primavera chegou!" Sempre que lia essa frase, sentia uma grande angústia e um dia vi-me tentada a entrar na loja e perguntar à menina onde é que parava a Primavera porque eu continuava a ver neve por toda a parte!
Em pleno Agosto, o oposto acontece: a montra reveste-se em tons outonais e começam a celebrar o dia das Bruxas. Antes do dia 1 de Novembro, já tinha começado a antecipação do ritual "Acção de Graças" e esta semana, o Natal instalou-se por completo no hospital. Durante dois dias, um grande corredor foi invadido por vários tipos de prendas e de objectos alusivos ao Natal. E agora sinto que está tudo descontrolado, i.e. até ao fim de ano será a loucura total em termos financeiros e ... alimentares! Em Janeiro, voltará tudo ao estado que encontrei quando cheguei: as pessoas contidas e as rádios e televisões passando sistematicamente publicidade sobre dietas milagrosas.
Esta necessidade de antecipação dos rituais de celebração, faz-me sentir que estou a perder algo que ainda não sei bem o que é, para além da sensação que não há tempo para a apreciação com qualidade de um determinado ritual. Antes de o celebrar, já estou a pensar no próximo. Faz sentido isto?
Comprei este prato na loja dos amigos do hospital. Não consegui resistir aos girassóis e pensei que seria uma agradável recordação de Omaha e uma bela prenda para o meu novo poiso em Dearborn. Entrei decidida na loja, disse à menina que queria esse prato e cheia de brio mostrei-lhe o meu cartão do hospital para ter direito a 10% de desconto. Ela, denotando algum desprezo pela minha ignorância, disse-me que era uma peça "de Outono, por isso, tem 40% de desconto". As peças de Outono apareceram pela primeira vez em Agosto... Ainda bem que não vi o prato na altura, é o que posso dizer agora!
- Maggs -

Saturday, November 03, 2007

Véu

Estranhamente
me transformo
me transcendo
mas não me estranho.

O que resta agora?
As minhas dores
- que são as minhas.
As tuas dores
- que são as tuas.

Efectivamente
apartados
desconhecidos
mas não o estranho.

O que dizer?
as nossas fragilidades
expostas ao cair do véu
as nossas incompreensões
evidentes nesta nudez crua.

Claramente
me transformei
me transcendi
liberta me sentindo.

O que fazer?
Partir, sem hesitações.
Porque hesitante tens sido tu.


- Maggs -

(Des)arranjo musical

Orquestra Sinfónica do n.º 608 de uma rua de Omaha

As janelas do meu quarto e da minha sala estão mesmo defronte desta orquestra que me proporciona momentos musicais praticamente 24h/24h. Obviamente, dou por mim à espera dos momentos de pausa musical porque não faz o meu estilo este género musical. Talvez por não apreciar este género, o instrumentista mais afoito está posicionado mesmo ao lado da janela do meu quarto. Um dia, fui investigar o "dono" deste instrumentista e descobri que pertencia ao meu vizinho do lado. Se tivesse matutado um pouco mais, nem teria valido a pena invadir o espaço da orquestra porque o meu vizinho gosta de fazer coro e presentea-me com umas gargalhadas bem agudas, em sintonia perfeita com o som difundido pela orquestra. Há cerca de dois meses, houve uma nova aquisição - o meu vizinho de cima. Esse deve pensar que os instrumentistas pertencem a uma banda militar porque as suas passadas lembram-me a marcha dos militares para além de fazer com que todo o meu apartamento entre em vibração.
Curiosidade: Os nativos daqui querem convencer-me que eu estou a morar num primeiro andar quando eu ainda acredito que estou no piso "rente ao chão", i.e. rés-do-chão. Ainda tentam ir mais longe, mostrando-me nos botões do elevador que eu trabalho no rés-do-chão em vez de ser numa cave. Continuo irredutível: moro no rés-do-chão e trabalho numa cave!
- Maggs -

Friday, November 02, 2007

Guerra & Paz

Sergei Bondarchuk realizou a "versão russa" de Guerra & Paz, em 1968. Em 1956, a "versão americana" tinha aparecido, sob a direcção de King Vidor. A versão russa acompanha-me sempre, tendo escrito "Valsa" com as imagens do filme a povoarem a minha imaginação.
Esta obra cinematográfica tem a capacidade de colocar em tela os pensamentos de personagens fulcrais da obra, nada mais sendo do que as inquietações do próprio Leão Tolstoy.
Aos catorze anos, vi as versões russa e americana na televisão portuguesa. De seguida, li a obra. Desde essa altura, já perdi a conta do número de vezes que reli Guerra & Paz. Quando vivi em Inglaterra, tive a oportunidade de comprar em VHS a versão russa. Como estes personagens estão aqui comigo tão presentes, sinto que quando estiver em Lisboa, vou ter de rever esta versão russa.
Na versão americana, Peter Fonta faz de Pedro Bezukov. Mas, Pedro é um homem corpulento que não sabe o que há-de fazer com o seu corpo, criando-lhe embaraços na corte... Tem um olhar irrequieto, igualmente dócil, que se antevê por detrás das lunetas. O realizador Sergei Bondarchuk fez o papel de Pedro, assumindo na plenitude a alma deste homem puro e cheio de dúvidas sobre o sentido da vida.
A bela Natacha que na passagem para a idade adulta fica noiva do príncipe Andrei Bolkonsky. Contudo, o noivado é rompido e Pedro vai visitá-la. Ela está desesperada porque tem a noção da dor que provocou no príncipe Andrei, considerando-se indigna de tudo e de todos.
"Não me fale assim, eu não o mereço! - exclamou Natacha, fazendo menção de retirar-se. Pedro, contudo, reteve-a.
Sabia haver ainda qualquer coisa para lhe dizer. Pronunciadas que foram porém as suas palavras, ele próprio se surpreendeu.
- Não, não, não diga isso: tem a vida toda diante de si - murmurou ele.
- Eu? Não, para mim tudo acabou - replicou ela num sentimento em que havia vergonha e humildade.
- Tudo acabou! - repetiu ele. - Se eu não fosse quem sou, se fosse o mais belo e o mais inteligente dos homens sobre a Terra, e se fosse livre, pedir-lhe-ia, neste mesmo momento, de joelhos, a sua mão e o seu amor.
Natacha, pela primeira vez de há muito tempo para cá, foi acometida de um ataque de choro, choro de reconhecimento e de emoção, abandonando a sala com um olhar de agradecimento.
Pedro saiu logo atrás dela, refugiando-se, por assim dizer, no vestíbulo, enquanto sufocava as lágrimas de felicidade que lhe haviam subido aos olhos. E, enfiando a peliça ao acaso, subiu para o trenó que o aguardava.
- Aonde vamos agora? - perguntou o cocheiro.
"Aonde vamos?", repetiu Pedro de si para consigo. "Aonde poderemos ir agora? Ao clube ou fazer visitas?" Tudo se lhe afigurava tão miserável, tão pobre, em comparação com os sentimentos de amor e doçura que o tinham invadido com aquele olhar comovido e cheio de reconhecimento, velado de lágrimas, que Natacha pousara nele.
- Para casa - gritou Pedro, que, apesar de dez graus abaixo de zero, abrira a peliça de urso e deixava dilatar de felicidade o seu largo peito." in Guerra & Paz
E como este momento ficou magistralmente registado na versão russa!
- Maggs -

(Re)aprendizagem do amor

Desaprendendo os afectos,
o vazio por companhia
na visita da solidão.

Chegará o tempo para
a (re)aprendizagem do amor
igualmente
a aprendizagem das suas nuances
claramente
a sua natureza se revelando -
nada mais do que uma necessidade egoísta.


- Maggs -

Monday, October 29, 2007

Valsa

Ao fundo,
o som dos violinos.

No salão, dançando
Andrei e Natacha.
Na varanda, sorrindo e sonhando
Pedro Bezukov.
No jardim, valsando e rindo
é onde me encontrarão.


- Maggs -

Sunday, October 28, 2007

Dualidade

Penetrante é o teu olhar,
terno se tornando,
ao me veres acabrunhada.

Estendes a tua mão,
o meu queixo levantando,
os nossos olhares se encontrando.

Sorris.
Sorrio.
O espelho mostrando
alguém que (re)conheço
mas que se esconde em mim

... teimosamente.


- Maggs -

Saturday, October 27, 2007

Renascer

As mãos, em concha,
a água fria jorrando,
a face refrescada,
a sede saciada.

Meu amor, não sentes
que já não há amarras?
que navego por outros mares?

Meu amor, não notas
que já não estou mais por perto?
que ganhei asas e sobrevôo outros céus?

A sede voltará, decerto.
Mas não de ti.


- Maggs -

Em mudança

Ainda em Omaha... mas com o pensamento em duas cidades que começam pela letra 'D': Detroit, onde irei trabalhar e Dearborn, onde irei viver. As duas cidades, vizinhas uma da outra, estão no estado do Michigan.
De Detroit, pode-se chegar ao Canadá, atravessando uma ponte e chegando à cidade de Windsor.
Em Dearborn, cidade onde está a sede mundial da empresa automóvel Ford, encontra-se uma grande comunidade de pessoas do Médio Oriente.
No meu futuro local de trabalho, há árabes (libaneses, egípcio), um judeu. Também há um russo, chineses, indiano... claro... americanos.
Vai ser muito enriquecedor viver e trabalhar num ambiente multi-cultural. Haverá tanto para aprender e apreender.

- Maggs -

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Até finais de Novembro, este blog estará em modo intermitente. A mudança é sempre um misto de descoberta e de ansiedade.

Welcome to Detroit

Deixámos Omaha numa tarde cinzenta mas o sol brilhava quando aterrámos no aeroporto internacional de Detroit. Apanhámos um pequeno autocarro para podermos ir buscar o carro alugado. O motorista, senhor dos seus sessenta anos, olhar vivo e curioso, ajudou-nos a colocar a bagagem no autocarro e partimos. Éramos só dois passageiros - o meu chefe e eu. O motorista iniciou a conversa com a pergunta que ele devia repetir vezes sem conta no dia: "De onde vêm?" A resposta do meu chefe levou a que eles falassem sobre o futebol americano e eu calada permaneci. A conversa ía animada entre os dois discutindo futebol, falando sobre as diferenças entre Omaha e Detroit quando o meu chefe esclareceu que nós não éramos de Nebraska e que eu até era de Portugal. O motorista diz em inglês: "A única frase que sei em português é" - e diz em português - "Não sei falar português." Eu fiquei surpreendida, gargalhei e dei-lhe os parabéns. O meu chefe ficou igualmente impressionado. Depois, a conversa generalizou-se pelos três e falámos sobre os descobrimentos e sobre Portugal e Espanha. Este senhor dominava a geografia e a história de uma maneira que me deixou sem palavras. Mas depois ele confessou-nos que era reformado da marinha americana. Então, não resisti e decidi fazer-lhe o teste final: "E já ouviu falar nas Ilhas de Cabo Verde?" Ficou ofendido e disse-me orgulhosamente: "Fica na costa oeste de África!", acrescentando: "E conheço um excelente músico de origem cabo-verdiana que toca jazz!" Dizemos os dois em uníssono: "Horace Silver!" Rimo-nos e o meu chefe só dizia "Extraordinário!" O motorista acrescenta: "Eu sei o nome completo dele. É Horace Ward Martin Tavares Silva." Aí eu disse-lhe que os meus conhecimentos não íam tão longe. Sempre risonho, disse: "Afinal sei duas frases em português!", dizendo em português: "Não sei falar português" e "A canção do meu pai", fazendo referência ao tema que Horace Silver compôs em homenagem ao seu pai, cabo-verdiano de origem. Expliquei-lhe que os meus pais era cabo-verdianos mas que eu tinha nascido em França. Aí ele diz alto e bom som: "Devia casar-me consigo! É muito viajada." Chegámos ao local onde o meu chefe iria buscar o carro. Ajudou-nos novamente com a bagagem. Perguntou-me o meu nome, deu-me um firme aperto de mão e disse: "Eu sou o Robert." Igualmente, cumprimentou o meu chefe e nós agradecemos-lhe o inesquecível diálogo. Ficámos tão bem dispostos, tendo em conta que deixámos uma Omaha cinzenta e de chuva miudinha.
- Maggs -
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Conhecidos meus ao saberem que iria começar a trabalhar em Detroit, descreveram-me uma imagem muito má e não recomendável da cidade, retratando-me zonas de violência provocadas por negros. Este simpático, atencioso e culto motorista é um senhor negro e como me senti feliz que a minha primeira interacção com um nativo da cidade tenha sido assim. Evidentemente, todas as cidades têm o seu lado menos bom e o seu lado encantador. O importante é evitar ideias pré-concebidas para se tirar o melhor partido do que a vida nos proporciona.

Escândalo na cantina

Pedi ao meu amigo Jeffrey uma salada do dia com camarões picantes. A perspectiva de comer camarões picantes aliciara-me. Com o papel do pedido, dirigi-me à menina da caixa, fiz o pagamento, aguardando depois que me chamassem. Algum tempo depois ouvi uma voz da cozinha dizendo: "qual é o molho?" A menina da caixa olhou para mim, sorrindo e perguntou-me: "qual é o molho?" Respondi: "Não quero molho." Ela abriu um pouco os olhos, não comentou e voltou-se para a cozinha: "Ela não quer molho." Da cozinha: "Ela não quer molho?!" A menina, sempre de sorriso nos lábios mas agora com um olhar interrogativo: "Tem a certeza?" E inumerou a lista dos molhos que eu nem me preocupei em compreender os nomes ou mesmo escolher. Sorri de volta, agradeci e disse-lhe que não queria molho. O senhor que costuma entregar as refeições, abanando sempre a cabeça, olhou para mim: "Não quer mesmo molho nenhum?" E depois disse como se tivesse tido uma ideia brilhante: "E não quer um molho sem gordura?". Aí, admito, apeteceu-me dizer-lhes: "O que eu queria mesmo era um bom azeite." Mas achei que correria o sério risco da minha salada ser confiscada e ser, delicadamente, conduzida à saída da cantina.
- Maggs -

Sunday, October 14, 2007

Concha

Ainda a noite reinava,
e a lua brilhava,
quando bati à tua porta.

Vim para te dizer que parti.
Parti, não me quedando mais aqui.
Aqui, onde julgas que és e nada és.
Nada és, na concha perseverando.

Ora o dia surge
e o sol brilha,
e o mundo é mais que esta concha.

- Maggs -

Miragens

Estas vozes, dissonantes
ecoando neste vazio.
Estas mãos, desnorteadas
tacteando um sentido para este vazio.


Estas miragens, incontáveis
apropriando-se de mim, criando este vazio.

Estas miragens, infindas
nada mais que sensações
não vividas de ilusões.


- Maggs -

Friday, October 12, 2007

O Homem e a natureza

Leão Tolstoy, em Yasnaya Polyana

No dia em que o Nobel da Paz foi para as alterações climáticas


"Centenas de milhar de seres humanos tentavam por todos os meios ao seu alcance destruir a terra em que viviam amontoados. Contudo, a despeito de se encarniçarem contra o solo - quer cobrindo-o de pedras para que nada germinasse, quer arrancando as ervas e derrubando as árvores, na ânsia de apagarem o mais pequeno sinal de vegetação, quer ainda escorraçando as aves e os outros animais e saturando a atmosfera com o fumo do carvão e do petróleo -, a Primavera nem mesmo na cidade deixava de impor os seus direitos.
Com efeito, o Sol brilhava ardentemente, a erva voltava a crescer - tanto onde fora arrancada, como por entre as pedras das ruas -, os jardins cobriam-se de espessos tapetes de verdura, os vidoeiros, os álamos e as cerejeiras enchiam-se de folhas tenras e fragrantes, as tílias floresciam, as gralhas, os pardais e os pombos construíam alegremente os seus ninhos e as abelhas e as vespas zumbiam à roda dos muros...
Tudo respirava alegria: as plantas, as aves, os insectos e as crianças. Apenas os homens continuavam a enganar-se e a atormentar-se mutuamente, pois só eles consideravam a ambição e a crueldade mais importantes e sagradas do que a divina beleza do Universo, criada por Deus com o fim de proporcionar ventura a todos os seres e predispô-los para a paz, a bondade e a ternura."

in Ressureição

Thursday, October 11, 2007

Vacina contra a gripe

Ainda a decidir se o dia seria dedicado aos electrões ou aos fotões, oiço a voz de uma das auxiliares de acção médica a apregoar que hoje iria haver vacinação contra a gripe para as pessoas do departamento. Como a minha imaginação gosta de me pregar partidas, comecei a rir-me porque o tom da voz dela e a forma como ela ía passando pelas salas e corredores a repetir a mesma frase, lembrou-me a imagem dos meninos que vendem os jornais, gritando "EXTRA! EXTRA!"
Deixei a física de parte e lá fui tomar a vacina. O local da vacinação foi no próprio departamento, na sala de reuniões. Duas enfermeiras do nosso departamento encarregaram-se disso e cadeiras foram colocadas à porta da sala, para nosso conforto, à medida que preenchíamos um questionário. Também havia rebuçados...
O questionário lá me fazia a pergunta-tabu: qual era o meu número de segurança social! Recebi tantos avisos sobre a importância de eu proteger esse número de olhares alheios e de como a saúde das minhas finanças depende da forma como o guardo que nem o sei de cor, não vá alguém raptar-me e subjugar-me à tortura! Obviamente, deixei essa linha em branco.
Lá recebi a vacina e voltei à física. Devia atacar os electrões mas ando muito embalada com os fotões... Amanhã, é um novo dia e dedicar-me-ei aos electrões.
- Maggs -

Harmonia...

""A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro. O homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo. Se a dor não existisse, o homem não conheceria os seus limites, não se conheceria a si mesmo. Nada mais difícil", pensava ele, continuando a sonhar, "que cada um saber reunir na sua própria alma o significado de todas as coisas. Reunir tudo? Não, não é essa a palavra. Não é possível unir toda as ideias, mas, sim, pô-las de acordo!", repetia, com uma espécie de entusiasmo interior, como se sentisse que essas palavras, e só elas, exprimiam perfeitamente o que ele queria dizer, resolvendo a questão que o atormentava. "Sim, é preciso pô-las de acordo, é tempo de harmonizar as coisas."
in Guerra & Paz
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Retrato do conde Leão Tolstoy - óleo sobre tela por Mikhail Nesterov.

Wednesday, October 10, 2007

Partida

Não sei...

pressinto que já parti.

Porventura,
parti há muito tempo
mas não me dei conta.

Hoje, o espelho
mostrou-me outra pessoa.
Foi aí que me dei conta
que já tinha partido.

Decerto,
parti há muito tempo
mas não me dei conta.

Não posso continuar aonde não estou.
Principalmente, porque tu é que nunca estiveste aqui.


- Maggs -

A caminhada

Para os meus pais
Para a Arega & Cª
Inspirou vagarosamente. Não havia pressa. Não agora que tinha chegado aonde queria. Expirou, no mesmo ritmo, enquanto o olhar, na mesma cadência respiratória, percorria a paisagem que se desnudava perante ela. Era a natureza que se despia ou era ela que entrava na sua intimidade?
Devagarinho, baixou-se e sentou-se no chão, sentindo-se inebriada com o cheiro da terra-mãe, prenhe de vida. Sorriu, ao notar o estado das solas das suas botas. Estavam gastas! Que longa caminhada tinha sido essa!
Olhou para as suas mãos, tentando apreender a sua vida, o seu percurso até esse momento. Por força da imaginação, essas mãos transformaram-se nas mãos de uma menina:
"Em criança, o que é que eu queria ser quando fosse grande?"
"Sou o que sonhei para mim? Sei que pedi a mim própria estar sempre em transformação - nem que fosse na minha imaginação ou através dela. Não posso parar porque há ainda tanto para ver, para experimentar, para sentir..."
As mãos tornaram-se transparentes e desapareceram porque ela agora estava no útero materno. O seu olhar permaneceu firme e inquisitivo no lugar onde as mãos de criança tinham estado momentos antes.
"E os meus pais? Porque eu iniciei a minha existência ainda antes de nascer, na imaginação deles. Sou o que eles sonharam para mim?"
"Eles ensinaram-me a voar, a continuar a caminhada quando a vontade é parar. Mostraram-me como aquietar esta sede de viver, que é eterna e intensa."
Esta caminhada ainda não tinha acabado. Na verdade, mal tinha começado.
Deitou-se de costas, as mãos - adultas e seguras - servindo de travesseiro e olhou para o céu azul e infinito. Cada olhar, um mundo diferente, uma interpretação própria.
"Será que um dia conseguirei ver a natureza tal qual ela é ou será sempre através do meu olhar, que é cheio de interpretações próprias? Enquanto sentir esta comunhão, a minha visão própria e particular da natureza não deverá estar longe da essência desta terra-mãe, tão prenhe de vida!"
Gargalhou e abriu os braços para o alto. Levantou-se decidida e disse em voz alta:
"Vamos embora! Há toda uma vida para explorar, tantas alegrias ainda para sentir e guardá-las preciosamente, dando o ânimo para ultrapassar as tristezas."
Acordou. Virou-se na cama, olhou para o relógio na mesinha de cabeceira e disse em voz alta:
"Vamos embora. Tenho esta vida para viver!"
- Maggs -

Monday, October 08, 2007

Tranquilidade

Feitas as escolhas
encaixaram-se as peças.

Ligeiro
se tornou o caminho.
Infinito
se tornou o querer.
As incertezas, porque as há,
fortalecendo as outras certezas,
que são as convicções.

Feitas estas escolhas,
estas aqui, não outras;
hesitações não poderiam existir
ao entrar por este caminho
e não por outro.


- Maggs -

Deixar Omaha

Baixa de Omaha


No dia 13 de Janeiro de 2007, cheguei a Omaha com duas malas e uma mochila às costas. No aeroporto, o meu chefe à minha espera com um papel com o meu nome e aqui descrevi o meu deslumbramento com a neve que na altura caía... Na semana passada, entreguei a minha carta de demissão e deixarei Omaha em finais de Novembro. Estou de partida para um outro estado, uma outra cidade, seguindo o meu chefe, procurando novos desafios.
Confesso que me vou embora sem ter conhecido verdadeiramente a cidade. Não o fiz, por falta de entusiasmo, de curiosidade e de algum espírito de aventura. De Omaha, conheço três supermercados, dois centros comerciais, a baixa da cidade - o meu local preferido -, o hospital onde trabalho e o sítio onde vivo.... Também conheço o jardim botânico de Omaha, onde roubei a alma a um hibisco vermelho.
Tento fazer um balanço destes praticamente dez meses que vou passar aqui e sinto que ficará a lembrança de pessoas muito afáveis. Cruzo na rua com pessoas que me são estranhas e elas sorriem, muitas vezes dizem "olá", outras chegando até a desejar "um feliz dia". Nas lojas, posso suspeitar desta simpatia, até porque vi casos extremos de sorrisos largos que me levavam a imaginar que chegada a noite, a pessoa já deitada e antes de desligar a luz do candeeiro, tirava o sorriso congelado, revelando uma expressão sem vida, para retomar no outro dia bem cedo aquela expressão de alegria encomendada. Não vou sentir saudades do facto desta cidade ser pequena - para os padrões norte-americanos - que o sistema de transportes público resume-se a autocarros que eu nunca usei. Não é uma cidade pensada para os peões ou para pessoas que, como eu, preferem usar os transportes públicos em vez de terem a sua própria viatura.
Sim, na lembrança sorrisos de pessoas afáveis tal como é o sorriso da Lynne, a senhora que trabalha na cafeteria onde todos os dias vou tomar o meu chá. Ela tem uma presença muito suave, um sorriso simpático mas de olhar distante - o que sempre me intrigou. Há cerca de um mês disse-me que era de Ohio mas que vivia em Omaha há vinte anos e que na véspera tinha visto familiares que não via desde que tinha deixado o estado de origem. Foi aí que eu compreendi o seu sorriso, o seu olhar e pensei que eu também devo ter esse olhar - o olhar de uma saudade prolongada e da expectativa de um reencontro sempre iminente.
E o Jeffrey? Também preciso falar sobre o Jeffrey. Ele trabalha na cantina onde costumo ir almoçar, registando os pedidos para o almoço. Mesmo levando a minha comida, cruzamo-nos sempre e cumprimentamo-nos. Na semana passada, fui comprar o almoço e ele olha para mim, de modo firme, dizendo: hoje, sou eu que te ofereço o almoço. Não quis aceitar mas tive de me render quando ele me mostrou senhas que precisavam ser usadas. Costuma dizer-me: tens um sorriso bonito. Mas o meu sorriso nada mais é do que o reflexo do sorriso que ele tem ao atender as pessoas. Um dia, ele contou a mim e a outra colega que tinha dois trabalhos, que estava a tirar um mestrado em psicologia e que esta profissão era o melhor sítio para ele apreender o comportamento humano, observando como as pessoas entram na cantina, o que escolhem, como falam, etc.
Há também o Robert, do centro de cálculo. O computador que eu uso para "a minha caça ao 1%" é muito temperamental, obrigando-me a ir inúmeras vezes ao centro de cálculo. O Robert é com quem me dou melhor porque está sempre lá quando apareço. Sempre tranquilo e de sorriso aberto. A senhora da recepção, se demoro algum tempo sem aparecer, diz, mal abro a porta: "Já estava a estranhar a sua ausência. Seja bem-vinda!".
Sim, levo daqui muitos sorrisos atenciosos e tranquilos. E é isso que vou colocar na minha bagagem de memórias com a etiqueta "Omaha, Nebraska, USA".
- Maggs -

Sunday, October 07, 2007

Amanhecer em NY

vista do 31º andar do Millennium UN Hotel
Oiço, frequentemente, dizer que "Deus escreve direito por linhas tortas". Também já ouvi a expressão "Quem desdenha quer comprar". Depois de um fim de semana em NY, começo a acreditar que o meu "exílio" em Omaha deve-se ao facto de um dia ter desdenhado a cidade que nunca dorme.
Passei cerca de cinco horas de uma noite do mês de Abril de 2003 na Little Italy, com um grupo de colegas. Estávamos num workshop em Filadélfia e decidimos ir jantar a NY. Provavelmente, por estar saturada de metrópoles, onde muitas vezes se torna impossível ouvirmo-nos a pensar, odiei a experiência. Odiei aquele alcatrão, o cimento, as ruas sujas, a multidão.
O que dizer deste fim de semana em NY? Qual pessoa que esteve desterrada num lugar inóspito, senti uma alegria imensa com aquele rebuliço e nem a agressidade da condução automóvel me irritou. Que prazer caminhar por ruas cheias de pessoas - cheias de histórias pessoais -. Ouvir excelente música numa estação de metro ou no Central Park - simplesmente, parando, saboreando a música e depois continuar a explorar a cidade. Ir ouvir jazz no Blue Note e simplesmente sentir-me sedenta de novos sons. A artista dessa noite, Rachelle Ferrell, foi estrondosa e a sua risada contagiante - desculpando-se com o jetlag porque a banda tinha chegado de Tóquio - foi inesquecível.
Mas, para mim, o amanhecer em NY é que vai perdurar por muito, muito tempo na minha memória. Tive a sorte e o privilégio de ficar num 31º andar do Millennium UN Hotel, defronte ao edifício das Nações Unidas, permitindo uma vista fantástica da cidade. Quando cheguei ao quarto, na primeira noite, já estava escuro. Ao abrir a porta do quarto, fui por um longo corredor até chegar ao quarto propriamente dito e que visão... janelas enormes, mostravam-me as luzes da cidade. Não tive a coragem de baixar as persianas. O meu quarto estava virado para leste, por isso, era sempre acordada pelos primeiros raios de sol. Ainda sonolenta, levantava-me e ficava à janela um bocado e depois voltava à cama e dormia por mais um bocado, apesar do sol me bater de frente no rosto - mas era isso mesmo que eu queria. Não é o girassol a minha flor favorita?

Há ainda uma outra expressão "Nunca digas desta água não beberei". Desta vez, fui beber à fonte certa e conto ir lá mais vezes saciar a sede.

Friday, October 05, 2007

A dança da vida

Peguei naquele vestido.
Naquele especial.
Único.

Rindo e brincando
com as ondas,
descalça, na areia molhada.

Rodopiando, sem fim
Flutuando, com alegria
chegando ao meu âmago
transportada por brancas nuvens.

Onde
não há hesitações,
não há contradições,
somente
um longo maravilhamento
por sentir a vida a irromper em mim.


- Maggs -

Curiosidades... (III)

Estou a pensar seriamente em montar uma empresa que faça cartões de visita.
Onde costumo ir almoçar, o espaço está dividido em duas partes: uma para os "pobres" que ou levam comida de casa ou vão ao bar e outra para os "ricos" que ficam à parte e que têm direito a empregado de mesa, toalha e guardanapo de pano. Mas, os "ricos" comem o mesmo que os "pobres" que frequentam o bar. A comida é a mesma, contudo em vez de serem servidos em pratos e talheres de plástico, eles podem degustar o almoço com pratos e talheres à séria.
Hoje, ao almoço, observei um grupo de seis homens à porta da secção dos "ricos", à espera de serem conduzidos a uma mesa. Eles abriram as suas caixas de cartões de visita e começaram a trocar entre eles os cartões, tal como as crianças fazem quando estão a trocar cromos. Ou seja, antes de "quebrarem o gelo" com aquela conversa de circunstância, começaram logo a trocar os cartões não fosse o negócio correr mal e depois não se proporcionar o ambiente para a tal troca de cromos.
Bem... confesso que na semana passada, encomendei os meus cartões de visita. Mas os meus têm conchas do mar e ... se quero ir adiante com a ideia da empresa, decididamente, necessitarei de cartões de visita. E os meus têm conchas do mar!
- Maggs -

Thursday, October 04, 2007

Ponte

Devagarinho,
de mansinho,
uma pedra
a seguir outra
e outra
outra...

Peço
a ti,
a mim,
a nós
não sejamos irreflectidos.

Há tempo para
admirar o que nos rodeia
amadurecer os sentimentos
apreciar a chegada do momento.

Porque vai valer a pena
quando nos encontrarmos
a meio da ponte.


- Maggs -

Curiosidades... (II)

O telemóvel é praticamente um bem de primeira necessidade aqui. E observo com espanto que o uso do telemóvel sem recurso ao modo altifalante ou algo parecido durante a condução é prática corrente. Não me parecem preocupados nem com a possibilidade de um acidente por distracção nem com a conta telefónica.
Estando "mal habituada" aos padrões europeus (e penso que não seja só na Europa) onde só pago pelas chamadas que efectuo e pelas mensagens escritas que envio, não considerando o roaming, ando "nervosa" com a utilização do meu telemóvel aqui. Aqui, paga-se pela chamada que se faz, pela chamada que se recebe, pela mensagem que se envia e pela mensagem que se recebe. Por isso, só atendo as chamadas das pessoas que consigo identificar mas fico frustrada por receber mensagens de pessoas que não conheço e pagar por uma informação que não me diz respeito, tal como uma que recebi de um homem a dizer à namorada/mulher que se tinha demitido mas que o seguro de saúde para a criança estava assegurado. Isto num país onde sem um seguro de saúde está-se em apuros, acredito que seja uma excelente notícia mas... dispensava pagar por esta informação.
- Maggs -

Curiosidades... (I)

Ao habitual aviso de "proibido fumar" à entrada dos edifícios, pelo menos aqui em Omaha junta-se um outro... o desenho de uma arma de fogo e o símbolo de proibido por cima...
Para mim, o mais caricato foi ver esse aviso de proibição de porte de arma de fogo à entrada do parque de estacionamento de uma grande empresa de produtos alimentares, na baixa da cidade. Lembrei-me logo dos filmes de cowboys onde eles eram obrigados a deixar as armas antes de entrarem no saloon. Consigo até imaginar uma pessoa a deixar a arma à porta do parque a um marshal imaginário...
- Maggs -

Monday, October 01, 2007

Fome de viver

"Anseio abarcar, incluir na minha vida curta, tudo o que é acessível ao homem. Anseio falar, ler, manejar um martelo numa grande fábrica, ser vigia no mar, arar. Quero andar pela avenida Nevsky [em S. Petersburgo], ou nos campos abertos, ou nos oceanos - onde quer que a minha imaginação se estenda."

Anton Tchekov
Anton Tchekov e Leão Tolstoy, em Ialta, Crimeia

Avidez

Há um pulsar
insistente
aflitivo, muitas vezes.

Há uma voz
várias vozes, na verdade
em uníssono
em desacordo, muitas vezes.

Há uma vontade,
permanente,
hesitante, poucas vezes.

Há tanta comoção.
Há tanta contradição.
Há tanta determinação.

É simples:
Há sofreguidão de viver!

- Maggs -

As cores

Sussuram por aí
que o céu é azul
que o mar também é azul.

Há vermelho no céu.
Há verde no mar.
Há uma infinidade de tons
nesta vida que se desenrola,
nada mais sendo do que cambiantes
do nosso estado de alma.

- Maggs -

Thursday, September 27, 2007

Sonhando...

Com uma casa à beira-mar,
de janelas abertas de par em par.

Com o cheio a maresia,
de presença constante.

Com longas caminhadas,
de pés molhados.

Com as ondas brincando com as crianças
de gargalhadas encantadoras.

- Maggs -

Tuesday, September 25, 2007

Exílio

Estranho-me
nesta cidade
que me é estranha.

O andar, desajeitado
se encontra.
As mãos, vazias
se quedam.
O olhar, ausente
se fica.

O chão, estéril
se tornando
à minha passagem.

Harmonia,
no recolhimento,
aprendendo a viver
na multitude dos eus
igualmente
na expectativa do reencontro.

O chão, fértil
se tornando
à minha passagem.

Esta cidade
tornando-se suportável,
mesmo aprazível.

- Maggs -

Amizade

Tantos amigos!

Tantos sorrisos
em espontâneas
gargalhadas
se soltando.

Tantos olhares
que são ternos,
que são firmes,
também circunspectos,
se revelando.

Tantos abraços
que ainda
os sinto à minha volta,
se quedando.

Tantas saudades
e tantos amigos!

- Maggs -

António Aurélio Gonçalves

Não o fiz de propósito mas parece que o fiz em boa hora.
António Aurélio Gonçalves, conhecido por Nhô Roque, nasceu no dia 25 de Setembro de 1901, na cidade do Mindelo, em S. Vicente, Cabo Verde. Faleceu a 30 de Setembro de 1984.
Os estudiosos poderão falar das suas obras (em Portugal, Noite de Vento e Terra de Promissão estão disponíveis através da editora Caminho), os ex-alunos como ele era como pedagogo.
A Maggyzinha fala da terna lembrança de um homem de presença suave e agradável e de um sorriso discreto nos lábios.
- Maggs -

Monday, September 24, 2007

Rua do Nhô Roque

D. Bia era uma "senhora honrada", tal como ela fazia questão de frisar, empertigando o corpo pequeno, delgado e levantando ligeiramente o queixo. "Senhora honrada", dizíamos, porque "honradamente criei os meus seis filhos, ensinando-lhes a serem homens e mulheres honrados!" Costureira de profissão, "desde que me entendo por gente.", repetia às clientes enquanto lhes fazia a prova da roupa. Ainda criança, mostrara aptidão para a costura e a mãe, aliviada, encaminhara-a para aprendiz de costureira. Era menos uma preocupação saber que uma das filhas estava orientada com uma profissão. E D. Bia, de forma determinada e persistente, criou a sua reputação. Trabalhava em casa e quando lhe pediam a direcção, dizia "Conhece a rua do Nhô Roque? Ao chegar lá, pergunte pela casa da D. Bia que toda a gente me conhece nessa rua."
O quarto de costura da D. Bia dava para a rua do Nhô Roque e quando estava a trabalhar, as persianas de madeira da janela ficavam completamente abertas, de forma a aproveitar ao máximo a luz natural. Uma batida suave na persiana de madeira, fê-la parar a máquina de costura, baixar os óculos e sorrir ao reconhecer a pessoa que lhe batia à janela. Levantou-se com ligeireza, repousou os braços no peitoril da janela e iniciou uma alegre conversa com a amiga. A amiga tinha parado somente para dar um olá rápido porque ainda tinha de ir à praça comprar peixe para fazer no forno mas que logo mais, pela tardinha, passaria por ali novamente para a prova do vestido. "Não é que o baptizado do meu neto é já no Sábado? E daqui a uns dias, já o estou a ver a ir cursar." D. Bia riu com gosto, dizendo-lhe que não era bem 'uns dias', que a amiga não tinha necessidade de se preocupar porque o vestido estaria pronto para o baptizado e que "ainda bem que hoje eles conseguem ir cursar!"
D. Bia ficou ainda um pouco mais à janela, observando a amiga a afastar-se em direcção ao mercado. Quando se afastou da janela, fazendo tenção de regressar ao trabalho, o seu olhar caiu sobre a porta da casa do Nhô Roque. Sorriu ternamente, lembrando-se da sua figura erecta, elegante e de sorriso discreto nos lábios a caminhar em direcção à marginal para o seu passeio. Desde criança aprendera a admirá-lo, a respeitá-lo, observando-o à distância porque nunca se atrevera a conversar com ele. D. Bia não tinha tido a oportunidade de estudar, por isso, só o facto de saber que vivia perto de alguém que lia e que escrevia muito, dava-lhe uma grande alegria. Admitia que na sua luta honrada para dar a melhor educação aos filhos, tinha na sua mente a figura do Nhô Roque. Queria que os seus filhos estudassem e que se tornassem pessoas com cultura, para além de serem honrados. E se ele hoje estivesse vivo, ganharia toda a coragem do mundo e dir-lhe-ía que ela que nunca tinha estudado, tinha, honradamente, criado os seus seis filhos e que hoje, apesar da saudade por estarem todos emigrados, tinha a alegria de saber que os netos estavam a cursar, que falavam várias línguas e que até um estava a cursar para médico. Sabia que ele ficaria orgulhoso também, como se fosse da família.
O Nhô Roque de mãos nos bolsos das calças, postura erecta e de sorriso discreto nos lábios. Ainda de sorriso nos lábios, D. Bia recolheu à sua máquina de costura porque o vestido precisava ficar pronto para o baptizado do neto da amiga.

- Maggs -
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Vivendo na ilha do Santiago, passava as minhas férias escolares na ilha de S. Vicente. Na minha memória, tardes passadas no quintal da casa do Nhô Roque e da Djutinha a brincar. Ainda me lembro que havia um poço que eu estava proibida de me aproximar mas o resto do quintal era mais do que o suficiente para eu abrir asas e voar. A Djutinha de sorriso aberto e feliz por ter gente à volta, o Nhô Roque de sorriso discreto e postura erecta - um sorriso discreto e um olhar vivo! Nestes últimos dias, tenho pensado muito no Nhô Roque porque os meus pais dizem-me que quando for a Portugal em Dezembro, tenho de (re)ler as obras dele; porque todos nós temos excelentes recordações dele e que através da minha escrita posso prestar-lhe uma homenagem. Fiquei feliz por saber que na rua onde ele viveu, hoje é a Rua António Aurélio Gonçalves.

Presença

Ainda a noite
majestosa
igualmente
imperturbável
dava lugar ao dia
brilhante
igualmente
irrequieto
já eu estava pronta
para entrar pelo teu sono
sorrateira
igualmente
resoluta
e acompanhar-te pelo teu dia.

Não é isso que me tens feito desde que nos apartámos?


- Maggs -

Sunday, September 23, 2007

Quiçá (II)

Entreaberta
esta porta

quiçá, ainda
estranhos
um do outro,
hesitemos.

quiçá, ainda
sôfregos
um do outro,
ousemos.

Porque esta chave
foi encontrada
Porque esta porta
foi entreaberta

sejamos corajosos
e vivamos esta história.


- Maggs -

Como um rio...

Tantas saudades
nesta ausência
nesta distância

também
na tua presença.

Tantas saudades
no encontro
a separação
tornando-se iminente.

Tantas saudades
saciadas em tempo algum
quando o nosso tempo chegar.

Porque são estas saudades
que me fazem desaguar em ti,
nesta ausência
nesta distância

também
na tua presença.


- Maggs -

Saturday, September 22, 2007

Nha fidjo matcho

Lá vai ele. Tão novo e com tantas responsabilidades. Os calções vão escorregando à medida que ele caminha e ele, de modo automático, puxa-os para cima com a mão esquerda porque com a mão direita vai conduzindo o seu carro de lata. Deixai-o viver a sua infância. Não haverá tempo para uma criança se tornar adulta? Mas, basta estarmos vivos para estarmos sujeitos à adversidade...
Santiago regressava a casa depois de uma tarde com os amigos a jogar à bola. Também tinham feito um concurso de melhor carro de lata do mundo e o seu tinha ficado em segundo lugar. Ele sabia que para a próxima conseguiria o primeiro lugar porque ía pedir à mãe para comprar latas de azeite da marca X. É que essas latas tinham maior maleabilidade. Os planos já estavam todos feitos... E lá puxava ele os calções com a mão esquerda, enquanto a mão direita puxava o seu carro de lata, com uma carica como medalha de um honroso segundo lugar.
Ao entrar em casa pela porta da cozinha, pronto para gritar a plenos pulmões que a lata de azeite da marca X era a ideal para o seu próximo carro de lata, sentiu-se imediatamente acabrunhado com o ambiente pesado instalado em casa. Pessoas estranhas, sentadas à mesa. Silenciosas. Ele inquiriu: "A mãe?". Uma senhora, amiga da avó paterna, levantou-se e aproximou-se de Santiago, tentando agarrá-lo pelas mãos, fazendo com que ele largasse o carro. Mas ele recusou o gesto e apertando mais a mão direita no cabo de metal do carro, repetiu: "A mãe?". Nha Maria apareceu à porta que dava acesso ao resto da casa e fez um gesto para o neto se aproximar. O menino, obediente, seguiu a avó até ao quarto dela, deixando o carro perto da porta por onde tinha entrado. Ela fechou a porta do quarto, suavemente, sentou-se na berma da cama e chamou o neto para se sentar ao lado dela.
"É o pai, não é? Ele já devia ter regressado, não é? Ele costuma estar sempre de volta quando estou nas férias grandes... É o pai, não é?", Santiago falou de um trago só, após sentar-se no lugar indicado pela avó. Nha Maria, tentando manter uma postura tranquila, disse "Sim, é o teu pai. Ele já devia ter regressado. Mas o teu pai nunca foi de dar muitas notícias...". A avó ficou um largo tempo em silêncio. Os olhos do Santiago estavam dilatados e perscrutavam os olhos da avó que os baixava. "Um senhor da empresa esteve aqui há bocado e disse que perderam o contacto com o grupo onde o teu pai estava." Outra pausa. "Mas não está nada confirmado que tenha acontecido alguma coisa de mal ao teu pai. Ele está desaparecido... Entendes, meu neto?". Santiago não entendia. Ele só sabia que o pai se ausentava de casa por muito tempo. Ele sabia que o pai viajava para lugares distantes com outros homens e que trabalhavam para uma empresa e que o pai voltava sempre pelas férias grandes. Ele também sabia que nas férias grandes, os pais, a avó e ele exploravam a ilha de Santiago, vezes sem fim. Mas ele não entendia porque é que o pai estava 'desaparecido'.
"Avó, eu entendo." e coloca a sua mãozinha, pequenina, sobre as mãos da avó que repousavam no regaço. "O pai está fora e agora vai demorar mais algum tempo. Não é isso?". "É, meu neto. É isso mesmo." Nha Maria também queria acreditar que era mesmo só isso. Mas ela sabia que para onde o filho ía as coisas poderiam correr mal. E neste último sítio, uma guerra civil estava a eclodir. E o seu filho queria somente criar mais oportunidades para Santiago... Indo para longe, não vendo o filho a crescer... valeria a pena tamanho sacrifício? Era o que pensava Nha Maria. "Sim, meu neto. É isso mesmo.", repetiu. Santiago, tentando tranquilizar a avó, disse: "Avó, enquanto o pai não chegar, eu prometo que não vou dar tanto trabalho... assim, a avó e a mãe não se cansam tanto! Eu vou tentar ser menos traquinas... Também posso consertar as coisas... como o pai faz quando ele está aqui... Assim, nem vamos perceber que o pai ainda não chegou."
A mãe de Santiago, que tinha aberto a porta há já algum tempo, de olhos húmidos e transtornados pela angústia de uma incerteza mas sorrindo ternamente, disse baixinho: "Oh nha fidjo matcho..."* e fechou a porta novamente, dirigindo-se para as pessoas que estavam na cozinha.
- Maggs -
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* meu rapaz

Menina-moça-mulher

Peço-te,
mantém-te imóvel
um pouco mais.
Se puderes,
se quiseres...

Peço-te,
mantém-te imóvel
um pouco mais.
Por um instante,
por uma eternidade.
Como entenderes...

Peço-te, prolonga
um pouco mais
esse sorriso
que é meigo,
que é sensual,
esse olhar
que é vivo,
que é apaixonado.

És menina-moça-mulher
com esse sorriso,
com esse olhar.
- Enganaste-me tão bem
com essa carinha de santa -

Peço-te,
mantém-te imóvel
um pouco mais.
Quero guardar
esse sorriso
esse olhar
que são tão intensos...

Serás sempre minha
mas sei que
preciso deixar-te partir.

- Maggs -

Friday, September 21, 2007

Quiçá (I)

A porta fechada,
trancada.
A chave escondida,
olvidada.

Quiçá, de dia
acanhados,
inibidos,
não ousemos.

Quiçá, de noite
desprotegidos,
autênticos,
não hesitemos.

Porque esta chave
precisa ser encontrada.
Porque esta porta
precisa ser aberta.
Porque esta história
precisa ser vivida.

- Maggs -

Thursday, September 20, 2007

(Re)encontro

Estes grilhões
que me prendem
Estas correntes
que me sufocam
hão-de desaparecer.

Nesse dia
- que chegará certamente -
entrarei nessa barca
que, por mim, implora
incessantemente
navegarei
destemidamente
chegarei
infalivelmente
os pés na areia molhada
e alegremente
seguirei
ao meu (re)encontro.

- Maggs -

Wednesday, September 19, 2007

Beijo

No enamoramento,
estremeceu,
ruborizou.
Na face, o beijo
atrevido.
No ar, a gargalhada
cristalina.

Na saudade,
dormia,
sonhava.
Na face, o beijo
terno.
No ar, a presença
de uma ausência.

- Maggs -

Tuesday, September 18, 2007

Chuva (I)

Chove,
persistentemente.

Anoitece,
impiedosamente.

A janela aberta,
teimosamente.

A água, caindo
melodiosamente.

A terra molhada, exalando
despretensiosamente.

- Maggs -

Chuva (II)

Choveu.
Anoiteceu.

A terra saciada.

A chama extinta.

O coração aquietado.

- Maggs -

Variações sobre o mesmo tema (I)

Perdoa-me
por insistir
por galgar
por invadir
para chegar ao último reduto
onde estás qual Senhor de um reino órfão.

Perdoa-me
por não arredar pé
por não desistir
Aprendi a saber esperar.

- Maggs -

Variações sobre o mesmo tema (II)

Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Ao aproximar-se de casa, ao fim de um dia de trabalho, sentia crescer nela a expectativa de que naquele dia seria diferente. Tinha sempre a esperança de que ao abrir a caixa do correio encontraria a carta. E todos os dias, a carta não chegava. Sabia que tal não aconteceria, porém isso não a esmorecia. Pelo contrário, tinha aprendido a saber esperar.
Na tranquilidade da noite, escrevia uma nova carta. Eram cartas corriqueiras, que descreviam o seu dia-a-dia. Queria que ele soubesse que estava bem, acima de tudo. No dia seguinte, no caminho para o trabalho, passava pela estação dos correios e enviava a carta. Ao fim do dia, a expectativa voltava a crescer.
Uma noite sonhou que ele lhe dizia: "Tens de me vir buscar, tens de vir lutar por mim. Não consigo quebrar estas muralhas." Ainda o sol, timidamente, lançava os seus raios de luz para o início de um novo dia, já estava pronta para ir ter com o destinatário das cartas. Ao chegar, bateu à porta, espreitou à janela. Não havia sinal de vida. A porta estava trancada, as persianas estavam corridas. Mas não arredou pé, não desistiu. Tinha aprendido a saber esperar.
- Maggs -

Monday, September 17, 2007

Variações sobre o mesmo tema (III)

Perdoa-me
por vacilar
por duvidar
por questionar
ao chegar ao último reduto
onde estás qual Senhor de um reino auto-suficiente.

Perdoa-me
por arredar pé
por desistir
Aprendi que não queres que eu espere.

- Maggs -

Sunday, September 16, 2007

Encontro

Na antecipação do nosso encontro,
ensaio as palavras,
ensaio os gestos.

E, no meio da multidão,
mesmo antes dos meus olhos repousarem sobre os teus,
sentirei a tua presença,
sentirei que me observas à distância - insistentemente,
sentirei que tens estado à minha espera - pacientemente.

Na antecipação do nosso encontro,
ensaio as palavras,
ensaio os gestos.

Aproximar-me-ei, hesitante e trémula.
Não haverá palavras.
Não haverá gestos.
Aninhar-me-ei no teu peito que me parecerá imenso e apaziguador
e envolver-me-ás no teu abraço.

Na antecipação do nosso encontro,
não vou ensaiar as palavras,
não vou ensaiar os gestos,
muito menos o meu olhar
pois ele é límpido e cheio de saudades tuas.

- Maggs -

Uma ida ao cinema



Saíamos de casa, descíamos a rua do Hospital, virávamos na primeira rua à direita, depois na primeira à esquerda, continuávamos a descer por essa rua e virávamos na primeira à direita, atravessávamos o jardim da Escola Grande e chegávamos ao cinema. Outras vezes, continuávamos o passeio até à praça Afonso Albuquerque e os meus pais compravam mancarra às vendedeiras que estavam no jardim da Escola Grande.
Há um filme que vimos no cinema da Praia que me marcou de tal forma que ainda gravo na memória algumas imagens, como se tivessem ficado congeladas para sempre. Do que me consigo recordar, a história passa-se num bairro de operários e há um avô que ganha a vida a comprar e a vender bens usados, usando uma carroça puxada por um cavalo. O neto costuma acompanhá-lo e juntos apregoam os serviços do avô através de uma canção. O avô morre e a imagem que tenho bem vincada na minha memória é a de um grande plano da cara do menino e ele a lembrar-se (agora sei que era uma recordação!) dos percursos que faziam pela cidade na carroça do avô, cantando com ele.
Saímos do cinema e, no regresso a casa, estávamos todos a comentar o filme e eu, num misto de interrogação e de afirmação porque, acima de tudo, queria tranquilizar-me, disse algo do género: "Deus ficou triste por saber que o neto tinha ficado desconsolado, por isso, trouxe o avô ao mundo novamente, não é?" Na altura, com menos de dez anos, foi a minha forma de resolver a minha angústia por ver o menino triste. Hoje, sei que a realidade é outra mas em relação a este filme, a criança e o avô continuam a percorrer as ruas da minha imaginação apregoando que compram e vendem toda a espécie de bugigangas.
- Maggs -

Saturday, September 15, 2007

Conversa à porta de casa

"Foi num dia igualzinho a este que nasceste. Estava este calor seco e não corria uma única brisa.", ía dizendo a avó enquanto Santiago se sentava perto dela, no mocho que tinha trazido da cozinha. O cão Pulgas, percebendo que o dono não estava para aventuras, deitou-se prazenteiramente aos pés de Santiago que lhe ía acariciando as longas orelhas castanhas. Era uma tarde de Domingo e Nha Maria e o neto estavam sentados à porta de casa, aproveitando a sombra que batia ali sempre por essa altura do dia. As pessoas que íam passando, paravam e cumprimentavam Nha Maria, perguntando-lhe pela saúde e família, acabando, invarialmente, a conversa dizendo: "Mas este é o seu neto? Cada vez mais parecido com o pai!".
Nha Maria adorava contar estórias e Santiago era um excelente ouvinte, sempre de olhos arregalados, narinas dilatadas e de lábios entreabertos como se assim conseguisse absorver melhor todos os detalhes do que ela estava a contar. Mas ele não era o único ouvinte atento porque as crianças da redondeza sentavam-se à volta para ouvi-la contar as estórias que já tinham sido repetidas vezes sem conta mas que pareciam sempre novas porque ela mudava sempre um pormenor, omitia outro e realçava ainda um outro diferente. Mas assim que Santiago chamava a avó a atenção para o facto de estar a haver uma alteração, ela, com uma expressão séria mas de olhar brilhante e risonho, dizia: "Afinal? Quem é que está a contar a estória aqui?".
"Estás muito quieto, Santiago. Na volta, estás doente.", disse a avó, tentando espicaçar o neto, percebendo que a estória do nascimento dele e do porquê de se chamar Santiago não ía pegar. Santiago andava taciturno nos últimos dias e a avó tentava que ele se abrisse. Como o menino continuava calado, ela fez um compasso de espera e falou novamente como se estivesse a pensar em voz alta: "Se calhar, vou fazer doce de mancarra logo mais. Só que preciso de um ajudante... Mas se estás a sentir-te doente... fica para a próxima, não é, meu neto?" Santiago sorriu, contudo os olhos ainda de expressão melancólica, dizendo: "Não estou nada doente, avó!" "Então porque andas assim muito caladinho?", questionou Nha Maria. Santiago hesitou, suspirou e disse "Mas a avó não vai dizer a ninguém?" "Claro que não! Ninguém sabe das minhas conversas com o meu neto. Só se o Pulgas aqui falar." Santiago riu, dizendo: "Mas os cães não falam, avó!" Nha Maria, mulher vivida e conhecedora do comportamento humano, compreendeu que o neto iria finalmente partilhar com ela o que tanto o preocupava. "Avó, a mãe vai fazer anos e ... é assim ... eu quero muito oferecer-lhe algo bonito, grande e que ela nunca tenha tido... mas só tenho 200 escudos comigo. Tenho andado a juntar o meu dinheiro mas não vou conseguir nunca o que preciso para poder oferecer-lhe uma prenda linda!" E os olhos do menino brilhavam, as lágrimas contidas, os lábios tremendo.
Nha Maria não disse nada. Levantou-se, pegou na mão do neto e entraram em casa. Pulgas levantou a cabeça mas sentindo-se indolente voltou a baixá-la e a adormecer. Foram até ao quarto de Nha Maria que tirou do guarda-fato uma lata. Os olhos de Santiago sorriram e ele sussurou como se estivesse perante um grande tesouro: "Tantas cores diferentes...", quando a avó despejou o conteúdo da lata em cima da cama. Papéis coloridos e de várias qualidades, bocados de vários tipos de tecido, cordas em tons de dourado e prateado faziam um alegre contraste sobre a colcha em crochet de branco imaculado. "E que tal escolhermos as cores que mais gostares e fazermos um belo quadro à tua mãe? Será o nosso segredo. O que dizes?". "Um quadro, avó? ... Sim! E ela pode pôr na sala! Ela não tem dito que a parede por cima do sofá está muito vazia?", disse o menino, dando ares de pessoa entendida em quadros e paredes de sala, porém com o olhar de uma criança de sete anos que já sabia que iria oferecer à sua mãe "algo bonito, grande e que ela nunca tinha tido"!
- Maggs -

A composição

Naquele dia, a professora sentia-se particularmente cansada e a turma estava irrequieta. Por isso, ela mandou que os alunos fizessem uma composição onde falassem sobre eles. Eis uma delas:
"O meu nome é Santiago A.. Tenho 7 anos. Moro numa casa de cor verde com os meus pais mais a minha avó. A minha avó é a mãe do meu pai. Tenho um cão que se chama pulgas. Gosto muito do pulgas. O pulgas é pequeno, castanho e tem orelhas grandes. O pulgas gosta muito de brincar e eu gosto de brincar com ele. Mas, como diz a minha mãe, tenho de lavar sempre bem as mãos depois de brincar com o pulgas, principalmente se for comer. A minha avó faz doce de mancarra. Eu gosto muito de comer o doce de mancarra que a minha avó faz. E quando eu for grande, quero ser piloto-aviador porque quero conhecer o mundo inteiro. E é isto que eu quero dizer sobre mim."
- Maggs -
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Em Cabo Verde chamamos mancarra ao amendoim.

Pedido

Deixa que os meus dedos

passem pela tua testa,
desmanchando essas linhas de preocupação.

percorram a linha dos teus lábios,
desenhando um sorriso.

toquem o teu coração,
compassando-o com o meu.

enlacem nos teus dedos,
iniciando a nossa jornada.

- Maggs -

Friday, September 14, 2007

Espelho

Aproxima-te.
Não tenhas receio.
Nada mais sou do que o reflexo da tua alma.

Aproxima-te.
Sou eu que te chamo.
Olha para mim, para ti, para nós.

Aproxima-te.
Tenho tanto para te dizer.

Aproxima-te.
Não te inibas.

O mundo pode ser teu.
Basta acreditares.

- Maggs -

Feitiço

Ontem, dancei ao luar.
Enfeitiçada por ti me sentindo.
De vestido branco, diáfano,
revelei-me na minha verdadeira dimensão - sem máscaras.

Hoje, sob o sol brilhante,
o feitiço desapareceu.
Porém, continuas aqui ao meu lado.
Decerto, foi mais que um simples encantamento.

- Maggs -

Umbigo

O meu umbigo é redondo.
O meu umbigo é perfeito.
O meu umbigo é único.

Levanto o olhar.
A minha vida aconteceu
e eu não dei por nada.

- Maggs -

Thursday, September 13, 2007

Rádio de Cabo Verde


Passei esta última semana na míngua da rádio de Cabo Verde. Estando aqui na América profunda, esta situação levou-me a grandes inquietudes de alma.
Agora mesmo estou a ouvir o inconfundível Bana e já não estou aqui, em Omaha, mas sim, à beira-mar sentindo o cheiro a maresia, ouvindo o gargalhar das crianças que mergulham nas ondas do mar, observando a vendedeira que apregoa doces, água de côco ou manguinhas, ouvindo o som do cavaquinho que ressoa em mim vezes sem conta.
Nunca senti tanto a 'dor da saudade' tal como estou a senti-la neste ano aqui em Omaha. Por outro lado, são estes momentos que nos fazem ir mais além no conhecimento de nós próprios e dos nossos limites. E aqui, em Omaha, confirmo o que eu dizia a meia-voz quando estava em Londres: 'para sabermos para onde vamos, temos de saber de onde viemos'.
E no meu caso pessoal, é a minha ligação forte, vibrante com Cabo Verde que me faz ir mais além, que me faz procurar novos desafios, novas metas... porque sei que nesta minha jornada universal, cada vez mais me aproximo daqueles 'dez grãozinhos de terra'.
- Maggs -

Credit score

É difícil explicar o que não se entende, por isso, tentarei o meu melhor para explicar esta história do credit score. Aqui, contei que tive de deixar um depósito de 75 dólares na empresa que me fornece o serviço de internet, visto eu não ter um historial de crédito. Tentando mudar isso, fui aconselhada que a melhor maneira de começar a fazer o meu historial de crédito seria através da aquisição de um cartão de crédito.
Lá voltei à questão retórica de "quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?" pela dificuldade em obter o cartão visa: não tem historial de crédito; mas se não tenho historial de crédito, como posso então começar? Porém, o banco onde tenho conta decidiu contemplar-me com um secured visa card. Este cartão visa difere dos outros porque o valor do plafond no cartão tem de estar sempre disponível na minha conta a prazo. ... Quanta magnanimidade perante esta pobre criatura que quer construir um historial de crédito porque já não pode ouvir mais o comentário que "não tem historial de crédito" que mais parece "para nós, é como se não existisse".
Nas minhas pesquisas na internet sobre este tipo de cartão de crédito, encontrei a seguinte afirmação: que eu saberia que o meu historial de crédito estava no bom caminho a partir do momento que começasse a receber cartas com "ofertas" de cartão visa sem necessidade de ter este depósito de segurança. E existirá para mim, interrogo-me, maior ambição que a de finalmente passar a ser um número (de segurança social) com um historial de crédito???
Bem, com a preocupação de criar e manter um bom historial de crédito, mal recebi a carta com a ordem de pagamento da prestação das despesas efectuadas com o cartão, apressei-me a mandar o cheque no envelope que tinham enviado. Umas boas horas mais tarde, fiquei atordoada porque tinha a certeza que não tinha colocado o selo no envelope e eu não fazia a mínima ideia se o envelope era pré-pago ou não. E continuo inclinada a pensar que o envelope não era pré-pago. Não tenho visto disso aqui.... Mas hoje confirmei que o cheque chegou a bom porto e que o meu crédito está a florescer. Agora, ficarei na dúvida existencial até ao próximo extracto para ver se o envelope é pré-pago ou não. Provavelmente, virá uma despesa de 41 cêntimos para eu liquidar.
Pelo que percebi, quanto maior for o valor do credit score mais facilmente se consegue obter crédito para compras a prestação porque o vendedor sabe que 'não os deixaremos pendurados'. Por outro lado, os juros aplicados variam em função do credit score, por isso, nem me passa pela cabeça comprar algo a prestação nos próximos tempos.
- Maggs -

Wednesday, September 12, 2007

Oásis


Há um grito que não ecoa.
Há uma dor que não mitiga.
Há um olhar que não acontece.

Porém, no recesso da alma,
tudo se apazigua,
tudo se harmoniza,
tudo faz sentido.

Há uma voz que chama.
Há um odor que inebria.
Há uma mão que guia.

- Maggs -

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Tenda no deserto do Sahara
foto de Dan Heller