Sunday, March 30, 2008

Entardecer

Ericeira - 29 de Março de 2008

Friday, March 28, 2008

(Álvaro de Campos)

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, tudo...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...


Fernando Pessoa (1888-1935)

Wednesday, March 26, 2008

Absurdo...

Um raciocínio absurdo...

"Tal como há dias em que, sob o rosto familiar de uma mulher, encontramos como uma estranha aquela a que amamos há meses ou há anos, vamos talvez assim desejar mesmo aquilo que de repente nos torna tão sós. ... esta espessura e esta estranheza do mundo - é o absurdo."
"Os homens também segregam algo de inumano. Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico dos seus gestos, a sua pantomima privada de sentido torna estúpido tudo o que os rodeia. ... Esse mal-estar ante a inumanidade do próprio homem, essa queda incalculável ante a imagem daquilo que somos, essa "náusea", como lhe chama um autor [Jean-Paul Sartre] dos nossos dias, é também o absurdo. Também o estranho, que em certos segundos vem ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar e apesar disso inquietante que encontramos nas nossas próprias fotografias, é ainda o absurdo."


O homem absurdo...

"Se amar fosse o bastante, as coisas seriam simples de mais. Quanto mais amamos mais o absurdo se consolida. ... Porque o amor de que aqui se fala é enfeitado com as ilusões do eterno. Todos os especialistas da paixão no-lo dizem, não há amor eterno, a não ser contrariado. Não existe paixão sem luta. Tal amor só encontra fim na derradeira contradição, que é a morte. É preciso ser Werther ou nada. Ainda aí, há várias maneiras de alguém se suicidar, uma das quais é o dom total e o esquecimento de si próprio."
"... Só chamamos amor àquilo que nos liga a certos seres, em referência a um modo de ver colectivo, de que são responsáveis os livros e as lendas. Mas do amor só conheço essa mistura de desejo, de ternura e de inteligência que me liga a determinado ser. ... Não há amor generoso a não ser aquele que ao mesmo tempo se sabe passageiro e singular."

in O míto de Sísifo: ensaio sobre o absurdo - Albert Camus (1942)

Tuesday, March 25, 2008

Sem palavras

Não quero falar-vos das minhas mágoas.
Tampouco das minhas expectativas.
Ou das minhas venturas.

Bem maiores, para vós, são as vossas.


Sempre, vossas palavras,
proferidas das vossas janelas!


Sem palavras, sem alardes
Aprendamos a escutar
O que não se consegue falar.


- Maggs -

Trocos...

Há dias, numa loja, a minha despesa era de €16.80 e entreguei uma nota de €20. A jovem, ao abrir a caixa registadora, começa a dizer "Não, não, não", meneando a cabeça continuamente. Acto contínuo, pensei "a nota é falsa!". Mas esse lamento era somente o prenúncio da cantiga habitual:
"Não tem mais pequeno?"
"Não tem o dinheiro certo?"
"Não tenho trocos!"...
Não há maneira de me habituar a esta "chantagem", levando-me muitas vezes a não dirigir-me a determinadas lojas somente para evitar esta lengalenga.
Nas minhas primeiras idas à cantina do hospital, em Omaha, fui sempre alerta para a possibilidade de ter de ouvir este carpir mas não me lembro de uma única vez, em qualquer estabelecimento onde tenha pago com dinheiro, ouvir uma queixa por falta de trocos. Se tanto, um olhar surpreso se levasse uma nota "grande" mas com moedas para "facilitar o troco".
Será que o cliente tem de estar sujeito a isto? Será somente uma "falta de gestão" do dinheiro do caixa? Ou não há trocos suficientes a circular?

Barcelona

Hospital de la Santa Creu i de Sant Pau (Barcelona, Dez.-07)

Este hospital, em Barcelona, exerce um enorme fascínio sobre mim. Poderemos dizer que não será um hospital funcional para os dias de hoje, contudo, a sua arquitectura, os seus tijolos vermelhos, as suas árvores espalhadas pelo enorme pátio interior, fazem-nos esquecer que estamos, efectivamente, em ambiente hospitalar - e foi esse o objectivo dos arquitectos do hospital de la Santa Creu i de Sant Pau. Os pavilhões estão organizados por especialidade médica e cada um tem o nome de um santo, estando ligados, igualmente, por túneis subterrâneos. Aqui, a sua história, arquitectura e esculturas.

Friday, March 21, 2008

Simplesmente... livre

Ainda há tantos lugares
murmurando o meu nome
Em Nada me transformando
não me embrenhando neles.

Porque insistem em prender-me?
invadindo o meu Eu
Em Nada me mantendo
não me libertando de vós.

Anseio partir para esses lugares
E, um dia, de livre vontade,
Nada serei...
Com uma vida simplesmente... livre.


- Maggs -

Monday, March 17, 2008

Viagens...

"Uma folha impressa na nossa língua, um lugar onde à noite tentamos tomar contacto com os homens, permitem-nos imitar, num gesto familiar, o homem que éramos na nossa terra e que, à distância, nos parece tão estranho. Porque o que dá valor à viagem é o medo. Ele destrói em nós uma espécie de cenário interior. ... Viajar tira-nos esse refúgio. Longe dos nossos, da nossa língua, desligados de todos os nossos apoios, privados das nossas máscaras (não se conhecem as tarifas dos eléctricos e é tudo assim), ficamos inteiramente com a nossa aparência. Mas também por sentirmos a alma doente, damos a cada ser, a cada objecto, um valor de milagre. Uma mulher que dança sem pensar, uma garrafa em cima de uma mesa, avistada através de uma cortina: cada imagem se torna um símbolo. A vida parece-nos reflectir-se completamente neles, na medida em que a nossa vida, naquele momento, neles se resume.
... Se a linguagem daquelas terras se harmonizava com o que ressoava profundamente em mim, não era porque respondia às minhas perguntas mas porque as tornava inúteis. Não eram acções de graça que podiam subir-me aos lábios mas aquele Nada que não pôde nascer senão diante de paisagens esmagadas pelo sol. Não há amor à vida sem desespero de viver."

Amor à vida, in "O avesso e o direito" - Albert Camus (1913-1960)
ensaio escrito aquando de uma visita ao sul de Espanha, na altura com vinte e dois anos.

Sunday, March 16, 2008

Dilema

faço,
desfaço,
e refaço
...
os nós de um sentir
que me tem cativa.

invento emoções
recrio sensações
...
desejando não sentir
o que me tem cativa.


- Maggs -

"Pérolas de chuva" (IV)

Jacques Brel - Les bonbons (1967)

Je viens rechercher mes bonbons
Vois-tu Germaine j'ai eu trop mal
Quand tu m'as fait cette réflexion
Au sujet de mes cheveux longs
C'est la rupture bête et brutale
Je viens rechercher mes bonbons

Maintenant je suis un autre garçon
J'habite à l'hôtel George-V
J'ai perdu l'accent bruxellois
D'ailleurs plus personne n'a cet accent-là
Sauf Brel à la télévision
Je viens rechercher mes bonbons

Quand père m'agace moi
Je lui fais zop
Je traite ma mère de névropathe
Faut dire que père est vachement bath
Alors que mère est un peu snob
Mais enfin tout ça hein c'est le conflit des générations
Je viens rechercher mes bonbons

Et tous les samedis soir que je peux
Germaine j'écoute pousser mes cheveux
Je fais "glouglou" je fais "miam miam"
Je défile criant "Paix au Vietnam"
Parce qu'enfin enfin donc j'ai mes opinions
Je viens rechercher mes bonbons

Oh mais ça c'est votre jeune frère Mademoiselle Germaine
C'est celui qu'est flamingant
Je vous ai apporté des bonbons
Parce que les fleurs c'est périssable
Puis les bonbons c'est tellement bon
Bien que les fleurs soient plus présentables
Surtout quand elles sont en boutons
Je vous ai apporté des bonbons.

Saturday, March 15, 2008

Renúncia

Trouxe-te um livro
sobre grandes amores.

Trouxe-te um quadro
com amantes enlaçados.

Trouxe-te uma carta
escrita por outrém.


Despojei-me dos receios.
Desta vez, tão só,
trouxe-te a minha pessoa.



- Maggs -

"Pérolas de chuva" (III)



Jacques Brel - Les bonbons (1964)


Je vous ai apporté des bonbons
Parce que les fleurs c'est périssable
Puis les bonbons c'est tellement bon
Bien que les fleurs soient plus présentables
Surtout quand elles sont en boutons
Mais je vous ai apporté des bonbons

J'espère qu'on pourra se promener
Que Madame votre mère ne dira rien
On ira voir passer les trains
A huit heures moi je vous ramènerai
Quel beau dimanche allez pour la saison
Je vous ai apporté des bonbons

Si vous saviez ce que je suis fier
De vous voir pendue à mon bras
Les gens me regardent de travers
Y en a même qui rient derrière moi
Le monde est plein de polissons
Je vous ai apporté des bonbons

Oh! oui! Germaine est moins bien que vous
Oh oui! Germaine elle est moins belle
C'est vrai que Germaine a des cheveux roux
C'est vrai que Germaine elle est cruelle
Ça vous avez mille fois raison
Je vous ai apporté des bonbons

Et nous voilà sur la grande place
Sur le kiosque on joue Mozart
Mais dites-moi que c'est par hasard
Qu'il y a là votre ami Léon
Si vous voulez que je cède la place
J'avais apporté des bonbons...

Mais bonjour Mademoiselle Germain

Je vous ai apporté des bonbons
Parce que les fleurs c'est périssable
Puis les bonbons c'est tellement bon
Bien que les fleurs soient plus présentables
Surtout quand elles sont en boutons
Allez je vous ai apporté des bonbons

Friday, March 14, 2008

Carta de alforria

Nesta hora escura,
- pungente, crua -
destemida me torno
e me desnudo
e me defronto
e me reconheço.

Nesta hora escura,
- serena, doce -
apaziguada me encontro
e me basto,
e me alegro
e me revejo.

Nesta hora escura,
- cristalina, autêntica -
sem pejos, declaro que
"aprendi a dizer não
naqueles instantes que
me negaram a mão."


- Maggs -

Sunday, March 09, 2008

Tempo para o amor - primeiro tempo

"Três tempos", Hsiao-hsien Hou (2005) - música "Rain & tears", Aphrodite's Child

- De mãos dadas -

Recriei-te noutros corpos,
nada mais que repositórios
das minhas visões sobre ti.

Percorri outras terras,
crente que saía ao meu encontro
sem saber que buscava por ti.

Agora que estamos juntos,
- de mãos dadas -
- os dedos entrelaçados -
deixa-me confessar-te
que encontrei em ti
fragmentos de mim
porque em mim estão
fragmentos de ti.

fragmentos
perdidos num dia igual a este
feito de chuva e de lágrimas


- Maggs -