Monday, June 23, 2008

Lição de amor

Gosto de ouvir "The Story", programa produzido pela rádio pública do estado da Carolina do Norte e apresentado por Dick Gordon. The Story dá a oportunidade a cidadãos anónimos contarem a sua história que pode ter sido uma experiência traumática, uma benção recebida, um reconhecimento público a alguém que faleceu e que se sente que é necessário prestar uma homenagem única. Evidentemente, facilmente este tipo de programa pode cair na devassa da vida íntima das pessoas mas Dick Gordon é o condutor ideal. Seja um tema doloroso, seja um acontecimento de júbilo, Dick Gordon mantem a mesma entoação segura, suave e curiosa no sentido de fazer com que o seu interlocutor fale à vontade, quiçá fazendo com que se esqueça que há um microfone à frente. Assim, estamos todos juntos: o(s) contador(es) da história, Dick Gordon e todos os ouvintes, que permanecem num silêncio cúmplice.


O que ouvi hoje incitou-me finalmente a escrever sobre o programa que já faz parte do meu fim de dia. Neste fim de semana, um casal da Carolina do Norte casou-se pela primeira vez na igreja para renovação dos votos efectuados há quarenta anos. Na altura, o casamento não pôde ter sido realizado dentro da igreja. Não vou entrar nos detalhes mas o que importa é esta lição de amor:


Omelia, negra, casou-se com Alvin, branco, nos idos anos de 1968. Quando Alvin comunicou aos seus pais a sua intenção - tinha ido sozinho visitá-los por altura do Natal - o pai levantou-se e saiu de casa, ficando a mãe e o filho sem trocarem palavra. Na cerimónia de casamento, só apareceram os familiares da Omelia. Quatro anos depois, quando nasceu o segundo filho do casal, o pai de Alvin telefonou-lhe a perguntar "Precisam de companhia?" ao que Alvin respondeu "Precisamos." Alvin, que estava no trabalho, telefonou à esposa e perguntou-lhe "Precisas de companhia?". Omelia percebeu o que se passava porque já tinha havido um telefonema para a casa, onde a sogra se identificara e pedira o telefone do trabalho do filho. Omelia e Alvin estiveram até às 3h da manhã a limpar a casa e ela depois levantou-se cedo para fazer comida para as visitas. Os pais de Alvin chegaram e as apresentações começaram. Omelia já tinha 3 filhas de um relacionamento anterior. Omelia disse a Dick Gordon que sentiu que tudo iria ficar bem quando a sogra pegou no recém-nascido. À pergunta do locutor se ela não pensou em "cobrar" pela recusa em conhecê-la desde o início, ela disse que tal não lhe passara pela cabeça porque o que interessava era que os pais do seu marido estavam aí e tudo o que tinha acontecido no passado... fazia parte do passado. Omelia acrescentou também que nunca se falou sobre o que se tinha passado e que somente muitos anos mais tarde... estava ela e o Alvin casados havia 25 anos quando o sogro lhe disse "Pensei que o casamento só fosse durar seis meses."



Hoje, o meu pai enviou-me um poema que escreveu onde diz "É o amor e não o tempo que cura tudo."... E foi o amor, não o tempo que reuniu esta família. Que lição de amor maior do que receber alguém de braços abertos, sem fel no coração por um sofrimento passado?
E hoje lembrei-me que os meus pais, o Chico-Pai e a Maguy-Mãe, vão fazer quarenta anos de casados e não poderei estar por perto para aquele abraço infindo... mas não me vou cansar de lhes repetir o quanto os amo e que um dos melhores ensinamentos que me deram foi o de assumir sempre as minhas responsabilidades.

Tuesday, June 10, 2008

Náufragos...

A minha imagem de tranquilidade, de sintonia com a existência humana e com a natureza é a de um ancião de cabelos e barba brancos, vestido de forma simples e com um boné a proteger-lhe os olhos do sol impedioso. Está sentado num mocho, por baixo de uma das janelas da sua casa de piso térreo e construída em pedra negra, com as mãos a repousarem nos joelhos. A casa está situada algures numa encosta no interior da ilha de Santiago. Com uma vida levada na esperança de boas chuvas e de um bom ano de colheita, nesse momento, ele sorri porque tudo à sua volta está verde. A natureza dar-lhe-á o que ele precisa e ele contempla-a extasiado.

Ontem, fez um mês que cheguei aos Estados Unidos. Estou em Detroit há três semanas e comecei a trabalhar há uma. Com o meu regresso a Detroit, reencontrei o Said que já se interrogava sobre o meu paradeiro visto ter-lhe dito que regressaria em Janeiro e que lhe telefonaria para ele ir buscar-me ao aeroporto. Através dele, tenho conhecido outros árabes africanos, para além de ir-me cruzando com os clientes dele, de passagem por Detroit ou residentes como eu. As minhas conversas com ele e com os seus amigos árabes são tranquilas, sem pressas. Em comum, o facto de sermos de origem africana e emigrantes.

A minha vivência fica mais prenhe, mais rica e aprendo muito mais sobre como levar uma existência mais plena conversando com estas pessoas, indo assim ao encontro do ancião sentado à porta da sua casa feita de pedra e contemplar com ele a natureza. Pressinto que quanto mais conhecimentos adquiro mais me afasto do verdadeiro sentido da existência humana. Talvez seja por isso que os textos de Leão Tolstoy repercutam tanto dentro de mim, proporcionando-me a tranquilidade almejada. Após os sucessos estrondosos das obras Guerra & Paz e Ana Karenina, Tolstoy, até à sua morte, voltou-se para a sabedoria popular e para a busca incessante sobre o sentido da vida. Os diálogos sobre o nosso quotidiano são em inglês, uma língua estranha para todos nós por não ser a nossa língua materna e que se torna muitas vezes insuficiente para exteriorizarmos o nosso estado de alma. Contudo, eles ficam enriquecidos por olhares brilhantes e gestos de agradecimento e de apreciação, tornando-nos mais próximos porque, na verdade, somos todos náufragos.

Independentemente dos motivos que levaram cada um de nós a partir, a deixar a Pátria-amada, e a encontramo-nos aqui em Detroit, para nós terra alheia, somos náufragos porque seremos sempre sobreviventes ... convictos de termos sido impiedosamente arrancados do nosso ninho - das referências que dão sentido à nossa vida.

Friday, May 30, 2008

Marulhar das ondas

Mais um fragmento da história da D. Bia



Era uma senhora petite. Caminhava ligeira pelas ruas da cidade de Mindelo no seu passo pequeno e rápido, postura erecta e olhar decidido. As agruras da vida nunca lhe tinham tirado a capacidade de gargalhar. Por sentir o dom da vida a cada momento, os olhos de D. Bia bailavam constantemente de alegria. Esse júbilo nunca esmoreceu, nem quando descobriu, aos 24 anos, que o seu casamento era uma falácia e que tinha sido mais uma a cair na cantiga melodiosa de um marinheiro que aportava algumas vezes por ano em S. Vicente. Chorou silenciosamente mas o brilho nos olhos nunca chegou a desaparecer. E porque deveria? Tinha conseguido trazer ao mundo seis crianças saudáveis e que hoje só lhe davam alegrias!

Todavia, havia uma altura do dia onde o andar se tornava pausado, tranquilo, sem pressas. Pela manhãzinha, D. Bia fazia o percurso da avenida marginal até à praia da Laginha. Iniciara esse ritual no dia seguinte à partida do último filho para o estrangeiro e os amigos e conhecidos, ao cruzarem com ela, limitavam-se a cumprimentá-la não ousando quebrar o seu recolhimento. De olhar brilhante e sorriso bailando discretamente nos lábios, respondia ao cumprimento e repousava novamente o olhar na direcção do mar. Avançava vagarosamente pela marginal, em direcção à Laginha. Defronte ao mar, permanecia sentada por um largo tempo, ouvindo atentamente o marulhar das ondas, como se trouxesse novas dos filhos. No seu íntimo, ela ia respondendo. Falava das saudades, lembrava-se de algum episódio da infância dos filhos, agradecia aquela carta ou encomenda.

Eram esses momentos que lhe davam força para que o tal brilho nos olhos não esmorecesse nunca. Não exteriorizava os seus pensamentos mais íntimos, mas a dor da saudade consumia o seu pequeno ser muito mais do que a dor do fracasso do seu casamento ou mesmo das inúmeras dificuldades em criar e educar os seus filhos. Sentada defronte ao mar, abstraia-se do que a rodeava e imaginava os filhos sentados à volta dela. Ela protegia-os, mimava-os e deliciava-se porque via-os como quando eles ainda eram crianças e estavam sob a sua asa materna. Depois de saciada a saudade, levantava-se e fazia o percurso de regresso, parando no mercado para as compras do dia.



Maggs

George Bailey

George Bailey, abrindo os braços para mostrar ao empregado da loja o tamanho da mala que queria comprar para depois percorrer o mundo...



Desde criança, George Bailey sonhou em calcorrear o mundo, explorando novas terras e construindo grandes obras. O que ele não queria era ficar para sempre em Bedford Falls, uma cidade pacata dos Estados Unidos da América. Contudo a vida vai-lhe pregando partidas e ele vai adiando sempre o seu sonho, acabando por chegar à casa dos quarenta a fazer projectos em papel e a assumir o negócio do pai, uma espécie de cooperativa de habitação, implicando lidar com empréstimos, juros e a ficar confinado num escritório o dia inteiro. Na sua ânsia de partir e não criar laços, recusou-se a admitir que se apaixonou por Mary, a menina que virou mulher e que foi sempre apaixonada por ele. Rendeu-se ao amor, casou-se com Mary e tiveram quatro filhos, vivendo numa casa enorme e decadente que não podia ser devidamente restaurada por falta de dinheiro.

Na véspera de um Natal, endividado e sem saída, num acto de desespero, George pondera o suicídio porque "valia mais morto que vivo". No momento em que ele se encontra preparado para se atirar ao rio, o seu anjo da guarda cai à água e, instintivamente, George mergulha para o salvar... Porque foi o que ele fez sempre em toda a sua vida: salvou o irmão de morrer afogado quando eram crianças; salvou o farmacêutico de ir preso por ter dado o medicamento errado, visto estar transtornado ao saber da morte do filho; com o negócio herdado do pai por força de circunstâncias várias, salvou muitas famílias de irem viver nas barracas do maléfico homem de negócios Henry Potter...

It's a wonderful life (em português, o filme ficou conhecido sob o título "Do céu caiu uma estrela"), foi realizado por Frank Capra em 1946, com James Stewart e Donna Reid nos principais papéis. O filme surgiu numa altura em que era importante elevar o espírito de entre-ajuda e de reconciliação, após a experiência traumática da Segunda Guerra Mundial. Uma história simples, contada de trás para a frente, i.e. o filme começa no momento em que George pensa no suicídio e Deus decide chamar um anjo para o salvar. O anjo Clarence, há mais de duzentos anos à espera de ganhar as suas asas, é escolhido e Deus mostra-lhe os momentos fulcrais da vida de George, compreendendo-se porque é que ele quer tentar o suicídio. O anjo Clarence dá então ao George a oportunidade única de saber como é que as pessoas que lhe eram próximas teriam vivido se ele não tivesse sequer existido... Já que ele dizia que valia mais morto que vivo...


É um dos meus filmes obrigatórios do mês de Dezembro, visto passar-se na época natalícia. Mais do que isso, é o meu filme favorito. Quiçá porque me revejo vezes sem conta no George Bailey: uma ânsia de partir, de estar sempre em viagem e de sentir que há sempre algo para observar, sentir e vibrar. Na verdade, todos temos um pouco do George Bailey: uma vontade, tantas vezes indómita que nos deixa esgotados, de partir à busca de novos mundos.


George Bailey aprendeu com a oportunidade dada pelo anjo Clarence que o seu mundo, que o seu suporte era a família e os amigos.
Maggs

Monday, May 26, 2008

Objectos de afecto

Esta boneca vestida com um traje típico das mulheres africanas, feita em pano, meia collant e arame, faz parte do meu mundo desde Agosto de 2003.
Estávamos num passeio habitual pela Cidade Velha, na ilha de Santiago. Fiquei encantada com o colorido dos trajes, com a forma engenhosa como as bonecas tinham sido feitas. A minha tia Isabel, fluente em wolof, aproximou-se da venda dos Senegaleses e iniciou o regateio do preço.
Mera espectadora de um diálogo que não conseguia entender, pude contudo pressentir o crescer de um misto de alegria e de tristeza por parte da vendedora.
Escolhi a boneca e aí a tristeza da vendedora pareceu dominar a alegria por ter feito negócio. Afectuosamente, acariciou e beijou a boneca, dizendo algo em wolof. Fiquei ávida pela tradução e a minha tia disse-me que ela se tinha despedido da boneca e que lhe tinha desejado felicidades.
A senhora tinha deixado o seu país, vendendo artesanato do Senegal na Cidade Velha, uma cidade que vive essencialmente dos turistas. Tinha a sua banca de venda, fazia pela vida, quem sabe tivesse deixado família próxima na terra-mãe. A sua tristeza foi genuína por ter de deixar ir algo que tinha sido criado nas suas mãos.
A boneca tornou-se, naquele instante, um objecto de afecto e tem-me acompanhado por todas as cidades onde tenho vivido desde então. É um objecto de afecto por esta mulher, por África (meu continente de eleição), por mim que sou filha da diáspora e nela me encontro. Os objectos de afecto nada mais sendo do que uma concretização material de sentimentos que nos ligam a alguém, algo...
Maggs

Friday, May 16, 2008

Prosperidade

Prospect, ainda um cachorrinho



"Prospect, for prosperity", foi assim que o meu irmão e a minha cunhada justificaram o nome dado ao cão que faz parte da família há quase um ano. Pertence a uma raça que me causa grandes dissabores quando tento dizê-lo: dachshund. Lá me vão educando sobre as características desta raça, sendo a sexta preferida pelos norte-americanos.

Tem um porte um tanto ou quanto felino que contrasta com o seu tamanho pequeno. Olha nos olhos das pessoas e é muito atento, especialmente quando a comida está presente. Se estamos em divisões diferentes da casa, gosta de ir "controlando" onde cada um está, não vá perder um. Agora mesmo, decidiu que queria dar uma soneca. Aproximou-se de mim, saltou para o meu colo e está num sono solto enquanto escrevo estas linhas sobre ele.

Nunca fui grande fã de caninos mas este conseguiu cativar-me. Como diz o meu irmão "Ele olha nos olhos das pessoas!". Não há maneira de resistir a esse olhar...


Já me abandonou... É que aqui chegou o cheiro a almoço!



Maggs

Wednesday, May 14, 2008

Farol

Farol D. Maria Pia, Santiago, Cabo Verde


Para matar saudades, o meu primo Didi enviou-me hoje várias fotografias da ilha de Santiago. Apreciei esta em particular por me ter feito viajar no tempo até aos ensaios que o grupo infantil Korda Kauberdi tinha no farol, sob a batuta do Djonsa "Farol". Não sei bem porquê mas vi-me como uma das cantoras do pequeno grupo. Como não segui carreira .... não preciso entrar em detalhes sobre as minhas qualidades vocais.
Igualmente, a ideia que o farol transmite: a procura de uma luz que nos conduza a bom porto e por caminhos certos.
Maggs

Monday, May 12, 2008

A partida

Mais uma vez, era chegada a hora da partida. Grande azáfama e o nervosismo que aumentava porque o táxi não chegava para nos levar ao aeroporto. Depois de uma longa espera, apareceu um e o taxista justificando que era a hora do almoço, i.e. das 13h às 14h "é complicado conseguir um táxi"...
Colocámos as duas malas no porta-bagagens, a minha tia e a minha mãe instaladas no banco de trás. Mal fechei a porta traseira do carro, o taxista arrancou. Fiquei especada a ver o carro partir, parando uns cinquenta metros à frente. Caminhei para o táxi e o senhor desdobrou-se em pedidos de desculpas porque não tinha percebido que eu também iria viajar. No banco de trás, a minha tia e a minha mãe numa risada alegre. E eu respondi: "Se calhar, eu é que devo ficar."
Como iria viajar na SATA até Boston, a partida seria no terminal 2. Não vou tecer grandes comentários sobre o terminal... Ainda parece um estaleiro de obras em algumas partes e eu não compreendo muito bem a sua finalidade. Dizem eles que é para vôos domésticos mas eu iria num vôo internacional... E, pessoalmente, não considero nada agradável fazer aquela viagem de autocarro até ao avião...
A escala em Ponta Delgada torna-se, de certa maneira, agradável porque ao fim de duas horas de viagem, faz-se uma "pausa" e exercita-se as pernas numa das salas de embarque do aeroporto. Depois, são mais cinco horas de viagem até Boston. Uma hora depois de termos partido de Ponta Delgada, oiço pelo altifalante: "Srª Margarida Fragoso, por favor, diriga-se a um assistente de bordo." Lembrei-me de uma situação semelhante que tinha vivido há uns anos atrás quando viajei até Londres para visitar uma amiga. Na altura, a notícia não era agradável, por isso, fiquei logo apreensiva. Mas o sorriso simpático do assistente com quem falei, tranquilizou-me logo: tinham uma refeição vegetariana para a Srª Margarida Fragoso mas não sabiam em que lugar ela estava sentada. É que aprendi a minha lição! Ao comprar o bilhete de avião, peço sempre "refeição especial". Desta maneira, sou das primeiras a ser servida e a comida é ligeiramente melhor.
Felizmente, a minha passagem pela Imigração foi tão suave que até estranhei. Na minha cabeça, respostas para mil e uma perguntas que me pudessem fazer. Por outro lado, a passagem pela Alfândega foi um pouco mais emotiva. Um polícia perguntou-me se trazia comida comigo e quantos dólares transportava na altura. Admito que ele apanhou-me desprevenida porque estava completamente esquecida do bacalhau que tinha trazido para o meu irmão mas depois fiz um ar doutoral e frisei que, obviamente, não trazia comida e que trazia pouco dinheiro porque tinha conta bancária nos Estados Unidos porque já trabalhava aqui. É sofrida esta passagem pela Imigração e Alfândega...
Saí tão atordoada que nem vi o meu irmão e a minha cunhada! Mas depois os abraços, a alegria do reencontro fizeram-me esquecer ... esquecer por momentos as saudades daqueles que tive de deixar para trás.
Mas, parece-me que esta é a vida de um emigrante...
Maggs

Sunday, April 20, 2008

Andorinha di Bolta


No dia 3 de Maio de 2008, Sãozinha Fonseca apresenta o seu trabalho "Andorinha di Bolta". Sou suspeita para falar sobre a minha cunhada mas tenho a certeza que será um momento único. Pode ser que consiga presenciar...

Ná, Ó Menino Ná...

Sãozinha - Andorinha di Bolta

Ná, Ó Menino Ná

Ó rosto doce de ojo maguado,
Es bo cudado
Botal pa traz!
Nhor Des ta dano um bida de paz,
Ó nha Pecado
De ojo maguado!

Ná, ó menino ná,
Sombra rum fugi de li!
Ná, ó menino ná,
Dixa nha fijo dormi...

Sono de bida, sonho de amor,
Ou graça ou dor,
Es é nós sorte...
Se Deus, más logo, mandano morte,
Quem que tem medo
Ta morrê cedo.

Toma nha ombro, encosta cabeça,
Ja’n dabo peto,
Amá ragaz!
Ó esprito doce, ca bo tem pressa:
Deta co geto,
Dormi na paz...

Eugénio Tavares (1867-1930)

Saturday, April 19, 2008

Hora di Bai

Sãozinha - Sãozinha Canta Eugénio Tavares


Morna de Despedida

Hora de bai,
Hora de dor,
Ja’n q’ré
Pa el ca manchê!
De cada bêz
Que ‘n ta lembrâ,
Ma’n q’ré
Ficâ ‘n morrê!

Hora de bai,
Hora de dor!
Amor,
Dixa’n chorâ!
Corpo catibo,
Bá bo que é escrabo!
Ó alma bibo,
Quem que al lebabo?

Se bem é doce,
Bai é maguado;
Mas, se ca bado,
Ca ta birado!
Se no morrê
Na despedida,
Nhor Des na volta
Ta dano bida.

Dixam chorâ
Destino de home:
Es dor
Que ca tem nome:
Dor de crecheu,
Dor de sodade
De alguem
Que’n q’ré, que qu’rem...

Eugénio Tavares (1867-1930)

Tuesday, April 15, 2008

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de heróis, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá Carneiro (1890-1916)

Monday, April 14, 2008

A minha identidade

Quanto mais longe me encontro, mais perto me sinto...

Friday, April 11, 2008

Bistidu ku florzinhas

Maria era bunitona, como diziam os rapazes do Plateau. Fêmea negra, de pele luzidia mantida com os óleos que as primas lhe mandavam da Merka. Cabelo crespo, cortado bem rente, fazendo sobressair os olhos negros, o nariz afilado e os lábios carnudos, sempre em vermelho-carmin.

Pelos caminhos que percorria, no seu bambolear lento, provocava danos. Os homens quedavam mudos, seguindo com os olhos aquela mulher cheia de vida e de promessas que nunca se cumpriam. As mulheres tentavam mostrar-se indiferentes, desejando que ela caísse finalmente em desgraça. "Essas mulheres acabam sempre da mesma maneira: grávidas de um conquistador fala-barato!".

Mas Maria não queria acabar como as outras. A sua determinação crescia sempre que olhava para a figura da mãe que perdera o viço antes de chegar aos trinta e que aos cinquenta era uma mulher envelhecida, amarga, sem sonhos. Sim, ela iria arranjar um bom moço e iriam para a Merka, buscar vida melhor.

Ainda na lembrança dos homens e mulheres do Plateau, o dia que ela descera a rua principal da cidade no seu vestido de florzinhas que lhe tinham mandado da Merka. O vestido era branco com florzinhas vermelhas do mesmo tom daquele batom que ela usava sempre. Celestino, homem calado e cioso do seu ofício, perdeu o tino e desceu a rua com ela. Não falava mas olhava para Maria insistentemente. Ao chegarem ao fim da rua, Maria estacou, olhou para Celestino, e disparou: "O que queres?". Celestino, sorrindo, levou a mão ao bolso das calças e mostrou-lhe o dinheiro que iria depositar no banco.

- Uma palavra tua! Com este dinheiro e mais o que já juntei no banco, partimos para Merka quando quiseres.




- Maggs -

Thursday, April 10, 2008

Expectativas

Aguarda-se por
vivências sonhadas
momentos idealizados
alegrias partilhadas
sentimentos verdadeiros
respostas desejadas
encontros esperados

Aguardo por
instantes repletos de coisa nenhuma


- Maggs -

Adeus

Chegada a hora da partida
Mas não o da despedida.

Que logro!
A ruptura em cada encontro.
Palavras pensadas, mas silenciadas.
Olhares esquivos, tão vivos.
Sentimentos omissos, ainda que intensos.

Chegada a hora da partida.
Que seja outrossim o da despedida.



- Maggs -

Tuesday, April 08, 2008

Infância

O conto "A morte de Ivan Ilitch" foi publicado em 1886, contava Leão Tolstoy 58 anos. Ivan Ilitch, casado e com dois filhos, homem de Leis e com uma carreira irrepreensível na máquina do Estado, vê-se subitamente acometido de uma maleita que rapidamente toma conta do seu corpo, conduzindo-o à morte.

Ivan, no seu monólogo interior e quase sempre acompanhado pela dor física lancilante, chega à conclusão que a sua vida tinha sido levada "... como se regularmente tivesse vindo a descer precipitadamente a encosta que julgava trepar!".
"E Ivan Ilitch rememorou os minutos mais doces da sua existência. Porém, facto estranho, eles já não lhe pareciam tão felizes como dantes. Só a infância se salvava: só ela valeria a pena ser vivida se a vida regressasse. Ao mesmo tempo, Ivan Ilitch percebia que já não era o mesmo homem, que todas as suas recordações se referiam a outro, e não a ele".
"Mal abordava o período que desembocara no seu estado actual, todas as alegrias de outrora se fundiam como neve ao sol, pareciam mesquinhas, e até desonestas..."
"E quanto mais se afastava da infância para se aproximar do presente, mais as suas satisfações lhe pareciam duvidosas, insignificantes".

Nesta obra, Tolstoy aborda de forma intensa o tema da morte, descrevendo-a cruamente, porém, para mim, mais marcante é a chegada à conclusão por Ivan que os anos da sua infância tinham sido os mais genuínos...
"Bastava-lhe recordar-se do que era três meses antes para imediatamente verificar que tinha vindo regularmente a descer a encosta e a perder toda a esperança."
"Virado para a parede, só numa grande cidade, no meio de parentes e amigos, só como nem nas profundezas submarinas se pode estar, nem em qualquer ponto do globo, Ivan Ilitch transportava-se, em imaginação, para o seu passado. As visões surgiam uma após outra. Normalmente partia da actualidade, remontava à infância e aí se detinha".

Guardo na memória, a minha infância em Cabo Verde... quiçá os melhores anos da minha vida porque foi tudo vivido sob o olhar da inocência.



_________
retrato de Leão Tolstoy (1884) - óleo sobre tela por Nikolay Gay.
"A morte de Ivan Ilitch" (tradução de Pedro Tamen) - Edições João Sá da Costa

Uma tarde de chuva


Jardim Calouste Gulbenkian - 8 de Abril de 2008

Monday, April 07, 2008

Tempo para...

Debaixo do céu há momentos para tudo, e tempo certo para cada coisa:
Tempo para nascer e tempo para morrer.
Tempo para plantar e tempo para arrancar as plantas.
Tempo para matar e tempo para curar.
Tempo para destruir e tempo para construir.
Tempo para chorar e tempo para rir.
Tempo para gemer e tempo para bailar.
Tempo para atirar pedras e tempo para recolher pedras.
Tempo para abraçar e tempo para se separar.
Tempo para ganhar e tempo para perder.
Tempo para guardar e tempo para deitar fora.
Tempo para rasgar e tempo para coser.
Tempo para calar e tempo para falar.
Tempo para amar e tempo para odiar.
Tempo para a guerra e tempo para a paz.


Eclesiastes 3, 1-8

A minha história

Abdico de tudo

Das fantasias, em particular
A minha alma a apoquentar.

Das frases fáceis
Ditas, ouvidas e sempre fúteis.

Das opções ligeiras
As frustrações recalcadas.



Viro a página e não abdico
Daquela que serei
Do mundo onde viverei.


- Maggs -

Sunday, April 06, 2008

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cântico nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!


José Régio (1899-1969)

Saturday, April 05, 2008

Exílio (II)

A mala está pronta...
Os discos, os livros...
A gana de ir além...

Na ida,
solta-se amarras
ganha-se asas.

Na volta,
O exílio que persevera
A estranheza que teima.

Idas e voltas...
Encontros, na falta
Desencontros, na presença.


- Maggs -

Mário de Sá Carneiro

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.


Mário de Sá Carneiro (1890-1916)

Friday, April 04, 2008

Uma tarde de sol

Jardim Calouste Gulbenkian - 4 de Abril de 2008

Sunday, March 30, 2008

Entardecer

Ericeira - 29 de Março de 2008

Friday, March 28, 2008

(Álvaro de Campos)

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, tudo...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...


Fernando Pessoa (1888-1935)

Wednesday, March 26, 2008

Absurdo...

Um raciocínio absurdo...

"Tal como há dias em que, sob o rosto familiar de uma mulher, encontramos como uma estranha aquela a que amamos há meses ou há anos, vamos talvez assim desejar mesmo aquilo que de repente nos torna tão sós. ... esta espessura e esta estranheza do mundo - é o absurdo."
"Os homens também segregam algo de inumano. Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico dos seus gestos, a sua pantomima privada de sentido torna estúpido tudo o que os rodeia. ... Esse mal-estar ante a inumanidade do próprio homem, essa queda incalculável ante a imagem daquilo que somos, essa "náusea", como lhe chama um autor [Jean-Paul Sartre] dos nossos dias, é também o absurdo. Também o estranho, que em certos segundos vem ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar e apesar disso inquietante que encontramos nas nossas próprias fotografias, é ainda o absurdo."


O homem absurdo...

"Se amar fosse o bastante, as coisas seriam simples de mais. Quanto mais amamos mais o absurdo se consolida. ... Porque o amor de que aqui se fala é enfeitado com as ilusões do eterno. Todos os especialistas da paixão no-lo dizem, não há amor eterno, a não ser contrariado. Não existe paixão sem luta. Tal amor só encontra fim na derradeira contradição, que é a morte. É preciso ser Werther ou nada. Ainda aí, há várias maneiras de alguém se suicidar, uma das quais é o dom total e o esquecimento de si próprio."
"... Só chamamos amor àquilo que nos liga a certos seres, em referência a um modo de ver colectivo, de que são responsáveis os livros e as lendas. Mas do amor só conheço essa mistura de desejo, de ternura e de inteligência que me liga a determinado ser. ... Não há amor generoso a não ser aquele que ao mesmo tempo se sabe passageiro e singular."

in O míto de Sísifo: ensaio sobre o absurdo - Albert Camus (1942)

Tuesday, March 25, 2008

Sem palavras

Não quero falar-vos das minhas mágoas.
Tampouco das minhas expectativas.
Ou das minhas venturas.

Bem maiores, para vós, são as vossas.


Sempre, vossas palavras,
proferidas das vossas janelas!


Sem palavras, sem alardes
Aprendamos a escutar
O que não se consegue falar.


- Maggs -

Trocos...

Há dias, numa loja, a minha despesa era de €16.80 e entreguei uma nota de €20. A jovem, ao abrir a caixa registadora, começa a dizer "Não, não, não", meneando a cabeça continuamente. Acto contínuo, pensei "a nota é falsa!". Mas esse lamento era somente o prenúncio da cantiga habitual:
"Não tem mais pequeno?"
"Não tem o dinheiro certo?"
"Não tenho trocos!"...
Não há maneira de me habituar a esta "chantagem", levando-me muitas vezes a não dirigir-me a determinadas lojas somente para evitar esta lengalenga.
Nas minhas primeiras idas à cantina do hospital, em Omaha, fui sempre alerta para a possibilidade de ter de ouvir este carpir mas não me lembro de uma única vez, em qualquer estabelecimento onde tenha pago com dinheiro, ouvir uma queixa por falta de trocos. Se tanto, um olhar surpreso se levasse uma nota "grande" mas com moedas para "facilitar o troco".
Será que o cliente tem de estar sujeito a isto? Será somente uma "falta de gestão" do dinheiro do caixa? Ou não há trocos suficientes a circular?

Barcelona

Hospital de la Santa Creu i de Sant Pau (Barcelona, Dez.-07)

Este hospital, em Barcelona, exerce um enorme fascínio sobre mim. Poderemos dizer que não será um hospital funcional para os dias de hoje, contudo, a sua arquitectura, os seus tijolos vermelhos, as suas árvores espalhadas pelo enorme pátio interior, fazem-nos esquecer que estamos, efectivamente, em ambiente hospitalar - e foi esse o objectivo dos arquitectos do hospital de la Santa Creu i de Sant Pau. Os pavilhões estão organizados por especialidade médica e cada um tem o nome de um santo, estando ligados, igualmente, por túneis subterrâneos. Aqui, a sua história, arquitectura e esculturas.

Friday, March 21, 2008

Simplesmente... livre

Ainda há tantos lugares
murmurando o meu nome
Em Nada me transformando
não me embrenhando neles.

Porque insistem em prender-me?
invadindo o meu Eu
Em Nada me mantendo
não me libertando de vós.

Anseio partir para esses lugares
E, um dia, de livre vontade,
Nada serei...
Com uma vida simplesmente... livre.


- Maggs -

Monday, March 17, 2008

Viagens...

"Uma folha impressa na nossa língua, um lugar onde à noite tentamos tomar contacto com os homens, permitem-nos imitar, num gesto familiar, o homem que éramos na nossa terra e que, à distância, nos parece tão estranho. Porque o que dá valor à viagem é o medo. Ele destrói em nós uma espécie de cenário interior. ... Viajar tira-nos esse refúgio. Longe dos nossos, da nossa língua, desligados de todos os nossos apoios, privados das nossas máscaras (não se conhecem as tarifas dos eléctricos e é tudo assim), ficamos inteiramente com a nossa aparência. Mas também por sentirmos a alma doente, damos a cada ser, a cada objecto, um valor de milagre. Uma mulher que dança sem pensar, uma garrafa em cima de uma mesa, avistada através de uma cortina: cada imagem se torna um símbolo. A vida parece-nos reflectir-se completamente neles, na medida em que a nossa vida, naquele momento, neles se resume.
... Se a linguagem daquelas terras se harmonizava com o que ressoava profundamente em mim, não era porque respondia às minhas perguntas mas porque as tornava inúteis. Não eram acções de graça que podiam subir-me aos lábios mas aquele Nada que não pôde nascer senão diante de paisagens esmagadas pelo sol. Não há amor à vida sem desespero de viver."

Amor à vida, in "O avesso e o direito" - Albert Camus (1913-1960)
ensaio escrito aquando de uma visita ao sul de Espanha, na altura com vinte e dois anos.

Sunday, March 16, 2008

Dilema

faço,
desfaço,
e refaço
...
os nós de um sentir
que me tem cativa.

invento emoções
recrio sensações
...
desejando não sentir
o que me tem cativa.


- Maggs -

"Pérolas de chuva" (IV)

Jacques Brel - Les bonbons (1967)

Je viens rechercher mes bonbons
Vois-tu Germaine j'ai eu trop mal
Quand tu m'as fait cette réflexion
Au sujet de mes cheveux longs
C'est la rupture bête et brutale
Je viens rechercher mes bonbons

Maintenant je suis un autre garçon
J'habite à l'hôtel George-V
J'ai perdu l'accent bruxellois
D'ailleurs plus personne n'a cet accent-là
Sauf Brel à la télévision
Je viens rechercher mes bonbons

Quand père m'agace moi
Je lui fais zop
Je traite ma mère de névropathe
Faut dire que père est vachement bath
Alors que mère est un peu snob
Mais enfin tout ça hein c'est le conflit des générations
Je viens rechercher mes bonbons

Et tous les samedis soir que je peux
Germaine j'écoute pousser mes cheveux
Je fais "glouglou" je fais "miam miam"
Je défile criant "Paix au Vietnam"
Parce qu'enfin enfin donc j'ai mes opinions
Je viens rechercher mes bonbons

Oh mais ça c'est votre jeune frère Mademoiselle Germaine
C'est celui qu'est flamingant
Je vous ai apporté des bonbons
Parce que les fleurs c'est périssable
Puis les bonbons c'est tellement bon
Bien que les fleurs soient plus présentables
Surtout quand elles sont en boutons
Je vous ai apporté des bonbons.

Saturday, March 15, 2008

Renúncia

Trouxe-te um livro
sobre grandes amores.

Trouxe-te um quadro
com amantes enlaçados.

Trouxe-te uma carta
escrita por outrém.


Despojei-me dos receios.
Desta vez, tão só,
trouxe-te a minha pessoa.



- Maggs -

"Pérolas de chuva" (III)



Jacques Brel - Les bonbons (1964)


Je vous ai apporté des bonbons
Parce que les fleurs c'est périssable
Puis les bonbons c'est tellement bon
Bien que les fleurs soient plus présentables
Surtout quand elles sont en boutons
Mais je vous ai apporté des bonbons

J'espère qu'on pourra se promener
Que Madame votre mère ne dira rien
On ira voir passer les trains
A huit heures moi je vous ramènerai
Quel beau dimanche allez pour la saison
Je vous ai apporté des bonbons

Si vous saviez ce que je suis fier
De vous voir pendue à mon bras
Les gens me regardent de travers
Y en a même qui rient derrière moi
Le monde est plein de polissons
Je vous ai apporté des bonbons

Oh! oui! Germaine est moins bien que vous
Oh oui! Germaine elle est moins belle
C'est vrai que Germaine a des cheveux roux
C'est vrai que Germaine elle est cruelle
Ça vous avez mille fois raison
Je vous ai apporté des bonbons

Et nous voilà sur la grande place
Sur le kiosque on joue Mozart
Mais dites-moi que c'est par hasard
Qu'il y a là votre ami Léon
Si vous voulez que je cède la place
J'avais apporté des bonbons...

Mais bonjour Mademoiselle Germain

Je vous ai apporté des bonbons
Parce que les fleurs c'est périssable
Puis les bonbons c'est tellement bon
Bien que les fleurs soient plus présentables
Surtout quand elles sont en boutons
Allez je vous ai apporté des bonbons

Friday, March 14, 2008

Carta de alforria

Nesta hora escura,
- pungente, crua -
destemida me torno
e me desnudo
e me defronto
e me reconheço.

Nesta hora escura,
- serena, doce -
apaziguada me encontro
e me basto,
e me alegro
e me revejo.

Nesta hora escura,
- cristalina, autêntica -
sem pejos, declaro que
"aprendi a dizer não
naqueles instantes que
me negaram a mão."


- Maggs -

Sunday, March 09, 2008

Tempo para o amor - primeiro tempo

"Três tempos", Hsiao-hsien Hou (2005) - música "Rain & tears", Aphrodite's Child

- De mãos dadas -

Recriei-te noutros corpos,
nada mais que repositórios
das minhas visões sobre ti.

Percorri outras terras,
crente que saía ao meu encontro
sem saber que buscava por ti.

Agora que estamos juntos,
- de mãos dadas -
- os dedos entrelaçados -
deixa-me confessar-te
que encontrei em ti
fragmentos de mim
porque em mim estão
fragmentos de ti.

fragmentos
perdidos num dia igual a este
feito de chuva e de lágrimas


- Maggs -

Wednesday, January 09, 2008

Hábitos

Por hábito,
chamo por ti.
Às vezes, com urgência
outras, por hábito mesmo.

Por hábito,
espero por ti.
Nesta espera,
feita de hábitos,
até me esqueço
que por ti espero.

Por hábito,
chamo por ti.
Às vezes, com saudades
outras, por hábito mesmo.

Quiçá, já não sinta a tua ausência
neste hábito de sussurar o teu nome,
numa prece,
numa carícia,
numa alegria.



Acaso, por hábito,
não chamarás tu por mim?


- Maggs -

Ousadia

Compramos ilusões,
Vivemos frustrações,
Hesitamos opções.

Insistimos nas emoções
- que não são as nossas.
Permanecemos nos percursos
- que não são os nossos.

Nesta nudez crua,
mergulhados,
sufocados,
vazios.

Paremos aqui!
sejamos autênticos.
sejamos impetuosos.
sejamos honestos.


- Maggs -

Sunday, January 06, 2008

Tempos

Porque hesitas
Quando é o tempo da ousadia

Porque te ocultas
Quando é o tempo de te expores

Porque questionas
Quando é o tempo da acção

Porque te negas
Quando é o tempo de te assumires

Este instante é o teu tempo!


- Maggs -

Escavação

Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E minh'alma perdida não repousa!

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...
- Onde existo que não existo em mim?

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Um cemitério falso, sem ossadas,
Noites d'amor sem bocas esmagadas -
Tudo outro espasmo que princípio ou fim...


Mário de Sá Carneiro (1890-1916)

Saturday, January 05, 2008

"Pérolas de chuva" (II)



Gérard Depardieu, em Cyrano de Bergerac

Acto II, Cena VIII (uma parte)


CYRANO, LE BRET, LES CADETS, qui se sont attablés à droite et à gauche et auxquels on sert à boire et à manger


CYRANO, saluant d'un air goguenard ceux qui sortent sans oser le saluer
Messieurs... Messieurs... Messieurs...
LE BRET,
désolé, redescendant, les bras au ciel
Ah ! dans quels jolis draps...
CYRANO
Oh ! toi ! tu vas grogner !
LE BRET
Enfin, tu conviendras
Qu'assassiner toujours la chance passagère,
Devient exagéré.
CYRANO
Eh bien oui, j'exagère !
LE BRET, triomphant
Ah !
CYRANO
Mais pour le principe, et pour l'exemple aussi,
Je trouve qu'il est bon d'exagérer ainsi.
LE BRET
Si tu laissais un peu ton âme mousquetaire,
La fortune et la gloire...
CYRANO
Et que faudrait-il faire ?
Chercher un protecteur puissant, prendre un patron,
Et comme un lierre obscur qui circonvient un tronc
Et s'en fait un tuteur en lui léchant l'écorce,
Grimper par ruse au lieu de s'élever par force ?
Non, merci ! Dédier, comme tous ils le font,
Des vers aux financiers ? se changer en bouffon
Dans l'espoir vil de voir, aux lèvres d'un ministre,
Naître un sourire, enfin, qui ne soit pas sinistre ?
Non, merci ! Déjeuner, chaque jour, d'un crapaud ?
Avoir un ventre usé par la marche ? une peau
Qui plus vite, à l'endroit des genoux, devient sale ?
Exécuter des tours de souplesse dorsale ?...
Non, merci ! D'une main flatter la chèvre au cou
Cependant que, de l'autre, on arrose le chou,
Et donneur de séné par désir de rhubarbe,
Avoir son encensoir, toujours, dans quelque barbe ?
Non, merci ! Se pousser de giron en giron,
Devenir un petit grand homme dans un rond,
Et naviguer, avec des madrigaux pour rames,
Et dans ses voiles des soupirs de vieilles dames ?
Non, merci ! Chez le bon éditeur de Sercy
Faire éditer ses vers en payant ? Non, merci !
S'aller faire nommer pape par les conciles
Que dans des cabarets tiennent des imbéciles ?
Non, merci ! Travailler à se construire un nom
Sur un sonnet, au lieu d'en faire d'autres ?
Non, Merci ! Ne découvrir du talent qu'aux mazettes ?
Être terrorisé par de vagues gazettes,
Et se dire sans cesse : "Oh ! pourvu que je sois
Dans les petits papiers du Mercure François" ?...
Non, merci ! Calculer, avoir peur, être blême,
Préférer faire une visite qu'un poème,
Rédiger des placets, se faire présenter ?
Non, merci ! non, merci ! non, merci ! Mais... chanter,
Rêver, rire, passer, être seul, être libre,
Avoir l'œil qui regarde bien, la voix qui vibre,
Mettre, quand il vous plaît, son feutre de travers,
Pour un oui, pour un non, se battre, - ou faire un vers !
Travailler sans souci de gloire ou de fortune,
À tel voyage, auquel on pense, dans la lune !
N'écrire jamais rien qui de soi ne sortît,
Et modeste d'ailleurs, se dire : mon petit,
Sois satisfait des fleurs, des fruits, même des feuilles,
Si c'est dans ton jardin à toi que tu les cueilles !
Puis, s'il advient d'un peu triompher, par hasard,
Ne pas être obligé d'en rien rendre à César,
Vis-à-vis de soi-même en garder le mérite,
Bref, dédaignant d'être le lierre parasite,
Lors même qu'on n'est pas le chêne ou le tilleul,
Ne pas monter bien haut, peut-être, mais tout seul !

Edmond Rostand

"Pérolas de chuva" (I)



Jacques Brel - Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheur
Ne me quitte pas

Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'après ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants là
Qui ont vu deux fois
Leurs coeurs s'embraser
Je te raconterai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas

On a vu souvent
Rejaillir le feu
D’un ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
À te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas