Sunday, November 18, 2007

Choro silencioso

- Porque choras?
As lágrimas deslizavam suavemente pela face. Não era um choro convulsivo. Na verdade, nem sentia que estivesse a chorar. As lágrimas caíam, discretamente, desaguando nos lábios, deixando-lhe com um sabor a mar na boca.
- Porque me afastas de ti?
Recostou-se no sofá, abraçando-se. Como explicar-lhe que a vida tinha-lhe ensinado a apoiar-se em si própria? Como dizer-lhe que sabia que cada pessoa era um mundo e que, provavelmente, quando verdadeiramente precisasse ouvir uma voz amiga, essa voz não surgiria. Abriu os olhos, sorriu e disse:
- Estou bem. Não estou a chorar. São lágrimas de apaziguamento.
O encanto acabou. Estava sozinha na sala. Limpou as lágrimas com as mãos e levantou-se decidida. Caminhou até à janela e ficou a observar as árvores. "O Inverno está a chegar." pensou. "Vou sentir saudades de ver estas árvores com flores, cheias de vida. Agora é o tempo do recolhimento".
O telefone tocou. Era uma voz amiga.
- Maggs -

Friday, November 16, 2007

À procura

Sôfrega, procuro na multidão,
não um rosto conhecido
não um sorriso cúmplice
não um olhar compreensivo
mas vestígios da solidão que em mim vivem.

Talvez, assim...
não me sinta só, com a solidão por companhia.


- Maggs -

Opções

Mergulhada nas profundezas,
é onde quero permanecer.
A superfície, não me bastando.

Para além do que a vista alcança,
é onde quero perscrutar.
A proximidade, não me saciando.

Em transformação permanente,
é como quero viver.


- Maggs -

Saturday, November 10, 2007

Antecipação dos rituais de celebração

Desde que aqui cheguei tento manter-me a par dos "rituais de celebração" mas torna-se difícil acompanhar o ritmo americano. Consigo depreender a vinda de um ritual de celebração através dos objectos colocados na montra de uma das lojas dos amigos do hospital, que fica mesmo ao lado do elevador que me leva ao departamento de radioterapia.
Ainda o Inverno se encontrava bem instalado e sem vontade de ceder à Primavera, a montra mostrava-me objectos alusivos à chegada da estação das flores. Em particular, uma tabuleta de cores bonitas com a seguinte frase: "A Primavera chegou!" Sempre que lia essa frase, sentia uma grande angústia e um dia vi-me tentada a entrar na loja e perguntar à menina onde é que parava a Primavera porque eu continuava a ver neve por toda a parte!
Em pleno Agosto, o oposto acontece: a montra reveste-se em tons outonais e começam a celebrar o dia das Bruxas. Antes do dia 1 de Novembro, já tinha começado a antecipação do ritual "Acção de Graças" e esta semana, o Natal instalou-se por completo no hospital. Durante dois dias, um grande corredor foi invadido por vários tipos de prendas e de objectos alusivos ao Natal. E agora sinto que está tudo descontrolado, i.e. até ao fim de ano será a loucura total em termos financeiros e ... alimentares! Em Janeiro, voltará tudo ao estado que encontrei quando cheguei: as pessoas contidas e as rádios e televisões passando sistematicamente publicidade sobre dietas milagrosas.
Esta necessidade de antecipação dos rituais de celebração, faz-me sentir que estou a perder algo que ainda não sei bem o que é, para além da sensação que não há tempo para a apreciação com qualidade de um determinado ritual. Antes de o celebrar, já estou a pensar no próximo. Faz sentido isto?
Comprei este prato na loja dos amigos do hospital. Não consegui resistir aos girassóis e pensei que seria uma agradável recordação de Omaha e uma bela prenda para o meu novo poiso em Dearborn. Entrei decidida na loja, disse à menina que queria esse prato e cheia de brio mostrei-lhe o meu cartão do hospital para ter direito a 10% de desconto. Ela, denotando algum desprezo pela minha ignorância, disse-me que era uma peça "de Outono, por isso, tem 40% de desconto". As peças de Outono apareceram pela primeira vez em Agosto... Ainda bem que não vi o prato na altura, é o que posso dizer agora!
- Maggs -

Saturday, November 03, 2007

Véu

Estranhamente
me transformo
me transcendo
mas não me estranho.

O que resta agora?
As minhas dores
- que são as minhas.
As tuas dores
- que são as tuas.

Efectivamente
apartados
desconhecidos
mas não o estranho.

O que dizer?
as nossas fragilidades
expostas ao cair do véu
as nossas incompreensões
evidentes nesta nudez crua.

Claramente
me transformei
me transcendi
liberta me sentindo.

O que fazer?
Partir, sem hesitações.
Porque hesitante tens sido tu.


- Maggs -

(Des)arranjo musical

Orquestra Sinfónica do n.º 608 de uma rua de Omaha

As janelas do meu quarto e da minha sala estão mesmo defronte desta orquestra que me proporciona momentos musicais praticamente 24h/24h. Obviamente, dou por mim à espera dos momentos de pausa musical porque não faz o meu estilo este género musical. Talvez por não apreciar este género, o instrumentista mais afoito está posicionado mesmo ao lado da janela do meu quarto. Um dia, fui investigar o "dono" deste instrumentista e descobri que pertencia ao meu vizinho do lado. Se tivesse matutado um pouco mais, nem teria valido a pena invadir o espaço da orquestra porque o meu vizinho gosta de fazer coro e presentea-me com umas gargalhadas bem agudas, em sintonia perfeita com o som difundido pela orquestra. Há cerca de dois meses, houve uma nova aquisição - o meu vizinho de cima. Esse deve pensar que os instrumentistas pertencem a uma banda militar porque as suas passadas lembram-me a marcha dos militares para além de fazer com que todo o meu apartamento entre em vibração.
Curiosidade: Os nativos daqui querem convencer-me que eu estou a morar num primeiro andar quando eu ainda acredito que estou no piso "rente ao chão", i.e. rés-do-chão. Ainda tentam ir mais longe, mostrando-me nos botões do elevador que eu trabalho no rés-do-chão em vez de ser numa cave. Continuo irredutível: moro no rés-do-chão e trabalho numa cave!
- Maggs -

Friday, November 02, 2007

Guerra & Paz

Sergei Bondarchuk realizou a "versão russa" de Guerra & Paz, em 1968. Em 1956, a "versão americana" tinha aparecido, sob a direcção de King Vidor. A versão russa acompanha-me sempre, tendo escrito "Valsa" com as imagens do filme a povoarem a minha imaginação.
Esta obra cinematográfica tem a capacidade de colocar em tela os pensamentos de personagens fulcrais da obra, nada mais sendo do que as inquietações do próprio Leão Tolstoy.
Aos catorze anos, vi as versões russa e americana na televisão portuguesa. De seguida, li a obra. Desde essa altura, já perdi a conta do número de vezes que reli Guerra & Paz. Quando vivi em Inglaterra, tive a oportunidade de comprar em VHS a versão russa. Como estes personagens estão aqui comigo tão presentes, sinto que quando estiver em Lisboa, vou ter de rever esta versão russa.
Na versão americana, Peter Fonta faz de Pedro Bezukov. Mas, Pedro é um homem corpulento que não sabe o que há-de fazer com o seu corpo, criando-lhe embaraços na corte... Tem um olhar irrequieto, igualmente dócil, que se antevê por detrás das lunetas. O realizador Sergei Bondarchuk fez o papel de Pedro, assumindo na plenitude a alma deste homem puro e cheio de dúvidas sobre o sentido da vida.
A bela Natacha que na passagem para a idade adulta fica noiva do príncipe Andrei Bolkonsky. Contudo, o noivado é rompido e Pedro vai visitá-la. Ela está desesperada porque tem a noção da dor que provocou no príncipe Andrei, considerando-se indigna de tudo e de todos.
"Não me fale assim, eu não o mereço! - exclamou Natacha, fazendo menção de retirar-se. Pedro, contudo, reteve-a.
Sabia haver ainda qualquer coisa para lhe dizer. Pronunciadas que foram porém as suas palavras, ele próprio se surpreendeu.
- Não, não, não diga isso: tem a vida toda diante de si - murmurou ele.
- Eu? Não, para mim tudo acabou - replicou ela num sentimento em que havia vergonha e humildade.
- Tudo acabou! - repetiu ele. - Se eu não fosse quem sou, se fosse o mais belo e o mais inteligente dos homens sobre a Terra, e se fosse livre, pedir-lhe-ia, neste mesmo momento, de joelhos, a sua mão e o seu amor.
Natacha, pela primeira vez de há muito tempo para cá, foi acometida de um ataque de choro, choro de reconhecimento e de emoção, abandonando a sala com um olhar de agradecimento.
Pedro saiu logo atrás dela, refugiando-se, por assim dizer, no vestíbulo, enquanto sufocava as lágrimas de felicidade que lhe haviam subido aos olhos. E, enfiando a peliça ao acaso, subiu para o trenó que o aguardava.
- Aonde vamos agora? - perguntou o cocheiro.
"Aonde vamos?", repetiu Pedro de si para consigo. "Aonde poderemos ir agora? Ao clube ou fazer visitas?" Tudo se lhe afigurava tão miserável, tão pobre, em comparação com os sentimentos de amor e doçura que o tinham invadido com aquele olhar comovido e cheio de reconhecimento, velado de lágrimas, que Natacha pousara nele.
- Para casa - gritou Pedro, que, apesar de dez graus abaixo de zero, abrira a peliça de urso e deixava dilatar de felicidade o seu largo peito." in Guerra & Paz
E como este momento ficou magistralmente registado na versão russa!
- Maggs -

(Re)aprendizagem do amor

Desaprendendo os afectos,
o vazio por companhia
na visita da solidão.

Chegará o tempo para
a (re)aprendizagem do amor
igualmente
a aprendizagem das suas nuances
claramente
a sua natureza se revelando -
nada mais do que uma necessidade egoísta.


- Maggs -