Thursday, September 27, 2007

Sonhando...

Com uma casa à beira-mar,
de janelas abertas de par em par.

Com o cheio a maresia,
de presença constante.

Com longas caminhadas,
de pés molhados.

Com as ondas brincando com as crianças
de gargalhadas encantadoras.

- Maggs -

Tuesday, September 25, 2007

Exílio

Estranho-me
nesta cidade
que me é estranha.

O andar, desajeitado
se encontra.
As mãos, vazias
se quedam.
O olhar, ausente
se fica.

O chão, estéril
se tornando
à minha passagem.

Harmonia,
no recolhimento,
aprendendo a viver
na multitude dos eus
igualmente
na expectativa do reencontro.

O chão, fértil
se tornando
à minha passagem.

Esta cidade
tornando-se suportável,
mesmo aprazível.

- Maggs -

Amizade

Tantos amigos!

Tantos sorrisos
em espontâneas
gargalhadas
se soltando.

Tantos olhares
que são ternos,
que são firmes,
também circunspectos,
se revelando.

Tantos abraços
que ainda
os sinto à minha volta,
se quedando.

Tantas saudades
e tantos amigos!

- Maggs -

António Aurélio Gonçalves

Não o fiz de propósito mas parece que o fiz em boa hora.
António Aurélio Gonçalves, conhecido por Nhô Roque, nasceu no dia 25 de Setembro de 1901, na cidade do Mindelo, em S. Vicente, Cabo Verde. Faleceu a 30 de Setembro de 1984.
Os estudiosos poderão falar das suas obras (em Portugal, Noite de Vento e Terra de Promissão estão disponíveis através da editora Caminho), os ex-alunos como ele era como pedagogo.
A Maggyzinha fala da terna lembrança de um homem de presença suave e agradável e de um sorriso discreto nos lábios.
- Maggs -

Monday, September 24, 2007

Rua do Nhô Roque

D. Bia era uma "senhora honrada", tal como ela fazia questão de frisar, empertigando o corpo pequeno, delgado e levantando ligeiramente o queixo. "Senhora honrada", dizíamos, porque "honradamente criei os meus seis filhos, ensinando-lhes a serem homens e mulheres honrados!" Costureira de profissão, "desde que me entendo por gente.", repetia às clientes enquanto lhes fazia a prova da roupa. Ainda criança, mostrara aptidão para a costura e a mãe, aliviada, encaminhara-a para aprendiz de costureira. Era menos uma preocupação saber que uma das filhas estava orientada com uma profissão. E D. Bia, de forma determinada e persistente, criou a sua reputação. Trabalhava em casa e quando lhe pediam a direcção, dizia "Conhece a rua do Nhô Roque? Ao chegar lá, pergunte pela casa da D. Bia que toda a gente me conhece nessa rua."
O quarto de costura da D. Bia dava para a rua do Nhô Roque e quando estava a trabalhar, as persianas de madeira da janela ficavam completamente abertas, de forma a aproveitar ao máximo a luz natural. Uma batida suave na persiana de madeira, fê-la parar a máquina de costura, baixar os óculos e sorrir ao reconhecer a pessoa que lhe batia à janela. Levantou-se com ligeireza, repousou os braços no peitoril da janela e iniciou uma alegre conversa com a amiga. A amiga tinha parado somente para dar um olá rápido porque ainda tinha de ir à praça comprar peixe para fazer no forno mas que logo mais, pela tardinha, passaria por ali novamente para a prova do vestido. "Não é que o baptizado do meu neto é já no Sábado? E daqui a uns dias, já o estou a ver a ir cursar." D. Bia riu com gosto, dizendo-lhe que não era bem 'uns dias', que a amiga não tinha necessidade de se preocupar porque o vestido estaria pronto para o baptizado e que "ainda bem que hoje eles conseguem ir cursar!"
D. Bia ficou ainda um pouco mais à janela, observando a amiga a afastar-se em direcção ao mercado. Quando se afastou da janela, fazendo tenção de regressar ao trabalho, o seu olhar caiu sobre a porta da casa do Nhô Roque. Sorriu ternamente, lembrando-se da sua figura erecta, elegante e de sorriso discreto nos lábios a caminhar em direcção à marginal para o seu passeio. Desde criança aprendera a admirá-lo, a respeitá-lo, observando-o à distância porque nunca se atrevera a conversar com ele. D. Bia não tinha tido a oportunidade de estudar, por isso, só o facto de saber que vivia perto de alguém que lia e que escrevia muito, dava-lhe uma grande alegria. Admitia que na sua luta honrada para dar a melhor educação aos filhos, tinha na sua mente a figura do Nhô Roque. Queria que os seus filhos estudassem e que se tornassem pessoas com cultura, para além de serem honrados. E se ele hoje estivesse vivo, ganharia toda a coragem do mundo e dir-lhe-ía que ela que nunca tinha estudado, tinha, honradamente, criado os seus seis filhos e que hoje, apesar da saudade por estarem todos emigrados, tinha a alegria de saber que os netos estavam a cursar, que falavam várias línguas e que até um estava a cursar para médico. Sabia que ele ficaria orgulhoso também, como se fosse da família.
O Nhô Roque de mãos nos bolsos das calças, postura erecta e de sorriso discreto nos lábios. Ainda de sorriso nos lábios, D. Bia recolheu à sua máquina de costura porque o vestido precisava ficar pronto para o baptizado do neto da amiga.

- Maggs -
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Vivendo na ilha do Santiago, passava as minhas férias escolares na ilha de S. Vicente. Na minha memória, tardes passadas no quintal da casa do Nhô Roque e da Djutinha a brincar. Ainda me lembro que havia um poço que eu estava proibida de me aproximar mas o resto do quintal era mais do que o suficiente para eu abrir asas e voar. A Djutinha de sorriso aberto e feliz por ter gente à volta, o Nhô Roque de sorriso discreto e postura erecta - um sorriso discreto e um olhar vivo! Nestes últimos dias, tenho pensado muito no Nhô Roque porque os meus pais dizem-me que quando for a Portugal em Dezembro, tenho de (re)ler as obras dele; porque todos nós temos excelentes recordações dele e que através da minha escrita posso prestar-lhe uma homenagem. Fiquei feliz por saber que na rua onde ele viveu, hoje é a Rua António Aurélio Gonçalves.

Presença

Ainda a noite
majestosa
igualmente
imperturbável
dava lugar ao dia
brilhante
igualmente
irrequieto
já eu estava pronta
para entrar pelo teu sono
sorrateira
igualmente
resoluta
e acompanhar-te pelo teu dia.

Não é isso que me tens feito desde que nos apartámos?


- Maggs -

Sunday, September 23, 2007

Quiçá (II)

Entreaberta
esta porta

quiçá, ainda
estranhos
um do outro,
hesitemos.

quiçá, ainda
sôfregos
um do outro,
ousemos.

Porque esta chave
foi encontrada
Porque esta porta
foi entreaberta

sejamos corajosos
e vivamos esta história.


- Maggs -

Como um rio...

Tantas saudades
nesta ausência
nesta distância

também
na tua presença.

Tantas saudades
no encontro
a separação
tornando-se iminente.

Tantas saudades
saciadas em tempo algum
quando o nosso tempo chegar.

Porque são estas saudades
que me fazem desaguar em ti,
nesta ausência
nesta distância

também
na tua presença.


- Maggs -

Saturday, September 22, 2007

Nha fidjo matcho

Lá vai ele. Tão novo e com tantas responsabilidades. Os calções vão escorregando à medida que ele caminha e ele, de modo automático, puxa-os para cima com a mão esquerda porque com a mão direita vai conduzindo o seu carro de lata. Deixai-o viver a sua infância. Não haverá tempo para uma criança se tornar adulta? Mas, basta estarmos vivos para estarmos sujeitos à adversidade...
Santiago regressava a casa depois de uma tarde com os amigos a jogar à bola. Também tinham feito um concurso de melhor carro de lata do mundo e o seu tinha ficado em segundo lugar. Ele sabia que para a próxima conseguiria o primeiro lugar porque ía pedir à mãe para comprar latas de azeite da marca X. É que essas latas tinham maior maleabilidade. Os planos já estavam todos feitos... E lá puxava ele os calções com a mão esquerda, enquanto a mão direita puxava o seu carro de lata, com uma carica como medalha de um honroso segundo lugar.
Ao entrar em casa pela porta da cozinha, pronto para gritar a plenos pulmões que a lata de azeite da marca X era a ideal para o seu próximo carro de lata, sentiu-se imediatamente acabrunhado com o ambiente pesado instalado em casa. Pessoas estranhas, sentadas à mesa. Silenciosas. Ele inquiriu: "A mãe?". Uma senhora, amiga da avó paterna, levantou-se e aproximou-se de Santiago, tentando agarrá-lo pelas mãos, fazendo com que ele largasse o carro. Mas ele recusou o gesto e apertando mais a mão direita no cabo de metal do carro, repetiu: "A mãe?". Nha Maria apareceu à porta que dava acesso ao resto da casa e fez um gesto para o neto se aproximar. O menino, obediente, seguiu a avó até ao quarto dela, deixando o carro perto da porta por onde tinha entrado. Ela fechou a porta do quarto, suavemente, sentou-se na berma da cama e chamou o neto para se sentar ao lado dela.
"É o pai, não é? Ele já devia ter regressado, não é? Ele costuma estar sempre de volta quando estou nas férias grandes... É o pai, não é?", Santiago falou de um trago só, após sentar-se no lugar indicado pela avó. Nha Maria, tentando manter uma postura tranquila, disse "Sim, é o teu pai. Ele já devia ter regressado. Mas o teu pai nunca foi de dar muitas notícias...". A avó ficou um largo tempo em silêncio. Os olhos do Santiago estavam dilatados e perscrutavam os olhos da avó que os baixava. "Um senhor da empresa esteve aqui há bocado e disse que perderam o contacto com o grupo onde o teu pai estava." Outra pausa. "Mas não está nada confirmado que tenha acontecido alguma coisa de mal ao teu pai. Ele está desaparecido... Entendes, meu neto?". Santiago não entendia. Ele só sabia que o pai se ausentava de casa por muito tempo. Ele sabia que o pai viajava para lugares distantes com outros homens e que trabalhavam para uma empresa e que o pai voltava sempre pelas férias grandes. Ele também sabia que nas férias grandes, os pais, a avó e ele exploravam a ilha de Santiago, vezes sem fim. Mas ele não entendia porque é que o pai estava 'desaparecido'.
"Avó, eu entendo." e coloca a sua mãozinha, pequenina, sobre as mãos da avó que repousavam no regaço. "O pai está fora e agora vai demorar mais algum tempo. Não é isso?". "É, meu neto. É isso mesmo." Nha Maria também queria acreditar que era mesmo só isso. Mas ela sabia que para onde o filho ía as coisas poderiam correr mal. E neste último sítio, uma guerra civil estava a eclodir. E o seu filho queria somente criar mais oportunidades para Santiago... Indo para longe, não vendo o filho a crescer... valeria a pena tamanho sacrifício? Era o que pensava Nha Maria. "Sim, meu neto. É isso mesmo.", repetiu. Santiago, tentando tranquilizar a avó, disse: "Avó, enquanto o pai não chegar, eu prometo que não vou dar tanto trabalho... assim, a avó e a mãe não se cansam tanto! Eu vou tentar ser menos traquinas... Também posso consertar as coisas... como o pai faz quando ele está aqui... Assim, nem vamos perceber que o pai ainda não chegou."
A mãe de Santiago, que tinha aberto a porta há já algum tempo, de olhos húmidos e transtornados pela angústia de uma incerteza mas sorrindo ternamente, disse baixinho: "Oh nha fidjo matcho..."* e fechou a porta novamente, dirigindo-se para as pessoas que estavam na cozinha.
- Maggs -
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* meu rapaz

Menina-moça-mulher

Peço-te,
mantém-te imóvel
um pouco mais.
Se puderes,
se quiseres...

Peço-te,
mantém-te imóvel
um pouco mais.
Por um instante,
por uma eternidade.
Como entenderes...

Peço-te, prolonga
um pouco mais
esse sorriso
que é meigo,
que é sensual,
esse olhar
que é vivo,
que é apaixonado.

És menina-moça-mulher
com esse sorriso,
com esse olhar.
- Enganaste-me tão bem
com essa carinha de santa -

Peço-te,
mantém-te imóvel
um pouco mais.
Quero guardar
esse sorriso
esse olhar
que são tão intensos...

Serás sempre minha
mas sei que
preciso deixar-te partir.

- Maggs -

Friday, September 21, 2007

Quiçá (I)

A porta fechada,
trancada.
A chave escondida,
olvidada.

Quiçá, de dia
acanhados,
inibidos,
não ousemos.

Quiçá, de noite
desprotegidos,
autênticos,
não hesitemos.

Porque esta chave
precisa ser encontrada.
Porque esta porta
precisa ser aberta.
Porque esta história
precisa ser vivida.

- Maggs -

Thursday, September 20, 2007

(Re)encontro

Estes grilhões
que me prendem
Estas correntes
que me sufocam
hão-de desaparecer.

Nesse dia
- que chegará certamente -
entrarei nessa barca
que, por mim, implora
incessantemente
navegarei
destemidamente
chegarei
infalivelmente
os pés na areia molhada
e alegremente
seguirei
ao meu (re)encontro.

- Maggs -

Wednesday, September 19, 2007

Beijo

No enamoramento,
estremeceu,
ruborizou.
Na face, o beijo
atrevido.
No ar, a gargalhada
cristalina.

Na saudade,
dormia,
sonhava.
Na face, o beijo
terno.
No ar, a presença
de uma ausência.

- Maggs -

Tuesday, September 18, 2007

Chuva (I)

Chove,
persistentemente.

Anoitece,
impiedosamente.

A janela aberta,
teimosamente.

A água, caindo
melodiosamente.

A terra molhada, exalando
despretensiosamente.

- Maggs -

Chuva (II)

Choveu.
Anoiteceu.

A terra saciada.

A chama extinta.

O coração aquietado.

- Maggs -

Variações sobre o mesmo tema (I)

Perdoa-me
por insistir
por galgar
por invadir
para chegar ao último reduto
onde estás qual Senhor de um reino órfão.

Perdoa-me
por não arredar pé
por não desistir
Aprendi a saber esperar.

- Maggs -

Variações sobre o mesmo tema (II)

Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Ao aproximar-se de casa, ao fim de um dia de trabalho, sentia crescer nela a expectativa de que naquele dia seria diferente. Tinha sempre a esperança de que ao abrir a caixa do correio encontraria a carta. E todos os dias, a carta não chegava. Sabia que tal não aconteceria, porém isso não a esmorecia. Pelo contrário, tinha aprendido a saber esperar.
Na tranquilidade da noite, escrevia uma nova carta. Eram cartas corriqueiras, que descreviam o seu dia-a-dia. Queria que ele soubesse que estava bem, acima de tudo. No dia seguinte, no caminho para o trabalho, passava pela estação dos correios e enviava a carta. Ao fim do dia, a expectativa voltava a crescer.
Uma noite sonhou que ele lhe dizia: "Tens de me vir buscar, tens de vir lutar por mim. Não consigo quebrar estas muralhas." Ainda o sol, timidamente, lançava os seus raios de luz para o início de um novo dia, já estava pronta para ir ter com o destinatário das cartas. Ao chegar, bateu à porta, espreitou à janela. Não havia sinal de vida. A porta estava trancada, as persianas estavam corridas. Mas não arredou pé, não desistiu. Tinha aprendido a saber esperar.
- Maggs -

Monday, September 17, 2007

Variações sobre o mesmo tema (III)

Perdoa-me
por vacilar
por duvidar
por questionar
ao chegar ao último reduto
onde estás qual Senhor de um reino auto-suficiente.

Perdoa-me
por arredar pé
por desistir
Aprendi que não queres que eu espere.

- Maggs -

Sunday, September 16, 2007

Encontro

Na antecipação do nosso encontro,
ensaio as palavras,
ensaio os gestos.

E, no meio da multidão,
mesmo antes dos meus olhos repousarem sobre os teus,
sentirei a tua presença,
sentirei que me observas à distância - insistentemente,
sentirei que tens estado à minha espera - pacientemente.

Na antecipação do nosso encontro,
ensaio as palavras,
ensaio os gestos.

Aproximar-me-ei, hesitante e trémula.
Não haverá palavras.
Não haverá gestos.
Aninhar-me-ei no teu peito que me parecerá imenso e apaziguador
e envolver-me-ás no teu abraço.

Na antecipação do nosso encontro,
não vou ensaiar as palavras,
não vou ensaiar os gestos,
muito menos o meu olhar
pois ele é límpido e cheio de saudades tuas.

- Maggs -

Uma ida ao cinema



Saíamos de casa, descíamos a rua do Hospital, virávamos na primeira rua à direita, depois na primeira à esquerda, continuávamos a descer por essa rua e virávamos na primeira à direita, atravessávamos o jardim da Escola Grande e chegávamos ao cinema. Outras vezes, continuávamos o passeio até à praça Afonso Albuquerque e os meus pais compravam mancarra às vendedeiras que estavam no jardim da Escola Grande.
Há um filme que vimos no cinema da Praia que me marcou de tal forma que ainda gravo na memória algumas imagens, como se tivessem ficado congeladas para sempre. Do que me consigo recordar, a história passa-se num bairro de operários e há um avô que ganha a vida a comprar e a vender bens usados, usando uma carroça puxada por um cavalo. O neto costuma acompanhá-lo e juntos apregoam os serviços do avô através de uma canção. O avô morre e a imagem que tenho bem vincada na minha memória é a de um grande plano da cara do menino e ele a lembrar-se (agora sei que era uma recordação!) dos percursos que faziam pela cidade na carroça do avô, cantando com ele.
Saímos do cinema e, no regresso a casa, estávamos todos a comentar o filme e eu, num misto de interrogação e de afirmação porque, acima de tudo, queria tranquilizar-me, disse algo do género: "Deus ficou triste por saber que o neto tinha ficado desconsolado, por isso, trouxe o avô ao mundo novamente, não é?" Na altura, com menos de dez anos, foi a minha forma de resolver a minha angústia por ver o menino triste. Hoje, sei que a realidade é outra mas em relação a este filme, a criança e o avô continuam a percorrer as ruas da minha imaginação apregoando que compram e vendem toda a espécie de bugigangas.
- Maggs -

Saturday, September 15, 2007

Conversa à porta de casa

"Foi num dia igualzinho a este que nasceste. Estava este calor seco e não corria uma única brisa.", ía dizendo a avó enquanto Santiago se sentava perto dela, no mocho que tinha trazido da cozinha. O cão Pulgas, percebendo que o dono não estava para aventuras, deitou-se prazenteiramente aos pés de Santiago que lhe ía acariciando as longas orelhas castanhas. Era uma tarde de Domingo e Nha Maria e o neto estavam sentados à porta de casa, aproveitando a sombra que batia ali sempre por essa altura do dia. As pessoas que íam passando, paravam e cumprimentavam Nha Maria, perguntando-lhe pela saúde e família, acabando, invarialmente, a conversa dizendo: "Mas este é o seu neto? Cada vez mais parecido com o pai!".
Nha Maria adorava contar estórias e Santiago era um excelente ouvinte, sempre de olhos arregalados, narinas dilatadas e de lábios entreabertos como se assim conseguisse absorver melhor todos os detalhes do que ela estava a contar. Mas ele não era o único ouvinte atento porque as crianças da redondeza sentavam-se à volta para ouvi-la contar as estórias que já tinham sido repetidas vezes sem conta mas que pareciam sempre novas porque ela mudava sempre um pormenor, omitia outro e realçava ainda um outro diferente. Mas assim que Santiago chamava a avó a atenção para o facto de estar a haver uma alteração, ela, com uma expressão séria mas de olhar brilhante e risonho, dizia: "Afinal? Quem é que está a contar a estória aqui?".
"Estás muito quieto, Santiago. Na volta, estás doente.", disse a avó, tentando espicaçar o neto, percebendo que a estória do nascimento dele e do porquê de se chamar Santiago não ía pegar. Santiago andava taciturno nos últimos dias e a avó tentava que ele se abrisse. Como o menino continuava calado, ela fez um compasso de espera e falou novamente como se estivesse a pensar em voz alta: "Se calhar, vou fazer doce de mancarra logo mais. Só que preciso de um ajudante... Mas se estás a sentir-te doente... fica para a próxima, não é, meu neto?" Santiago sorriu, contudo os olhos ainda de expressão melancólica, dizendo: "Não estou nada doente, avó!" "Então porque andas assim muito caladinho?", questionou Nha Maria. Santiago hesitou, suspirou e disse "Mas a avó não vai dizer a ninguém?" "Claro que não! Ninguém sabe das minhas conversas com o meu neto. Só se o Pulgas aqui falar." Santiago riu, dizendo: "Mas os cães não falam, avó!" Nha Maria, mulher vivida e conhecedora do comportamento humano, compreendeu que o neto iria finalmente partilhar com ela o que tanto o preocupava. "Avó, a mãe vai fazer anos e ... é assim ... eu quero muito oferecer-lhe algo bonito, grande e que ela nunca tenha tido... mas só tenho 200 escudos comigo. Tenho andado a juntar o meu dinheiro mas não vou conseguir nunca o que preciso para poder oferecer-lhe uma prenda linda!" E os olhos do menino brilhavam, as lágrimas contidas, os lábios tremendo.
Nha Maria não disse nada. Levantou-se, pegou na mão do neto e entraram em casa. Pulgas levantou a cabeça mas sentindo-se indolente voltou a baixá-la e a adormecer. Foram até ao quarto de Nha Maria que tirou do guarda-fato uma lata. Os olhos de Santiago sorriram e ele sussurou como se estivesse perante um grande tesouro: "Tantas cores diferentes...", quando a avó despejou o conteúdo da lata em cima da cama. Papéis coloridos e de várias qualidades, bocados de vários tipos de tecido, cordas em tons de dourado e prateado faziam um alegre contraste sobre a colcha em crochet de branco imaculado. "E que tal escolhermos as cores que mais gostares e fazermos um belo quadro à tua mãe? Será o nosso segredo. O que dizes?". "Um quadro, avó? ... Sim! E ela pode pôr na sala! Ela não tem dito que a parede por cima do sofá está muito vazia?", disse o menino, dando ares de pessoa entendida em quadros e paredes de sala, porém com o olhar de uma criança de sete anos que já sabia que iria oferecer à sua mãe "algo bonito, grande e que ela nunca tinha tido"!
- Maggs -

A composição

Naquele dia, a professora sentia-se particularmente cansada e a turma estava irrequieta. Por isso, ela mandou que os alunos fizessem uma composição onde falassem sobre eles. Eis uma delas:
"O meu nome é Santiago A.. Tenho 7 anos. Moro numa casa de cor verde com os meus pais mais a minha avó. A minha avó é a mãe do meu pai. Tenho um cão que se chama pulgas. Gosto muito do pulgas. O pulgas é pequeno, castanho e tem orelhas grandes. O pulgas gosta muito de brincar e eu gosto de brincar com ele. Mas, como diz a minha mãe, tenho de lavar sempre bem as mãos depois de brincar com o pulgas, principalmente se for comer. A minha avó faz doce de mancarra. Eu gosto muito de comer o doce de mancarra que a minha avó faz. E quando eu for grande, quero ser piloto-aviador porque quero conhecer o mundo inteiro. E é isto que eu quero dizer sobre mim."
- Maggs -
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Em Cabo Verde chamamos mancarra ao amendoim.

Pedido

Deixa que os meus dedos

passem pela tua testa,
desmanchando essas linhas de preocupação.

percorram a linha dos teus lábios,
desenhando um sorriso.

toquem o teu coração,
compassando-o com o meu.

enlacem nos teus dedos,
iniciando a nossa jornada.

- Maggs -

Friday, September 14, 2007

Espelho

Aproxima-te.
Não tenhas receio.
Nada mais sou do que o reflexo da tua alma.

Aproxima-te.
Sou eu que te chamo.
Olha para mim, para ti, para nós.

Aproxima-te.
Tenho tanto para te dizer.

Aproxima-te.
Não te inibas.

O mundo pode ser teu.
Basta acreditares.

- Maggs -

Feitiço

Ontem, dancei ao luar.
Enfeitiçada por ti me sentindo.
De vestido branco, diáfano,
revelei-me na minha verdadeira dimensão - sem máscaras.

Hoje, sob o sol brilhante,
o feitiço desapareceu.
Porém, continuas aqui ao meu lado.
Decerto, foi mais que um simples encantamento.

- Maggs -

Umbigo

O meu umbigo é redondo.
O meu umbigo é perfeito.
O meu umbigo é único.

Levanto o olhar.
A minha vida aconteceu
e eu não dei por nada.

- Maggs -

Thursday, September 13, 2007

Rádio de Cabo Verde


Passei esta última semana na míngua da rádio de Cabo Verde. Estando aqui na América profunda, esta situação levou-me a grandes inquietudes de alma.
Agora mesmo estou a ouvir o inconfundível Bana e já não estou aqui, em Omaha, mas sim, à beira-mar sentindo o cheiro a maresia, ouvindo o gargalhar das crianças que mergulham nas ondas do mar, observando a vendedeira que apregoa doces, água de côco ou manguinhas, ouvindo o som do cavaquinho que ressoa em mim vezes sem conta.
Nunca senti tanto a 'dor da saudade' tal como estou a senti-la neste ano aqui em Omaha. Por outro lado, são estes momentos que nos fazem ir mais além no conhecimento de nós próprios e dos nossos limites. E aqui, em Omaha, confirmo o que eu dizia a meia-voz quando estava em Londres: 'para sabermos para onde vamos, temos de saber de onde viemos'.
E no meu caso pessoal, é a minha ligação forte, vibrante com Cabo Verde que me faz ir mais além, que me faz procurar novos desafios, novas metas... porque sei que nesta minha jornada universal, cada vez mais me aproximo daqueles 'dez grãozinhos de terra'.
- Maggs -

Credit score

É difícil explicar o que não se entende, por isso, tentarei o meu melhor para explicar esta história do credit score. Aqui, contei que tive de deixar um depósito de 75 dólares na empresa que me fornece o serviço de internet, visto eu não ter um historial de crédito. Tentando mudar isso, fui aconselhada que a melhor maneira de começar a fazer o meu historial de crédito seria através da aquisição de um cartão de crédito.
Lá voltei à questão retórica de "quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?" pela dificuldade em obter o cartão visa: não tem historial de crédito; mas se não tenho historial de crédito, como posso então começar? Porém, o banco onde tenho conta decidiu contemplar-me com um secured visa card. Este cartão visa difere dos outros porque o valor do plafond no cartão tem de estar sempre disponível na minha conta a prazo. ... Quanta magnanimidade perante esta pobre criatura que quer construir um historial de crédito porque já não pode ouvir mais o comentário que "não tem historial de crédito" que mais parece "para nós, é como se não existisse".
Nas minhas pesquisas na internet sobre este tipo de cartão de crédito, encontrei a seguinte afirmação: que eu saberia que o meu historial de crédito estava no bom caminho a partir do momento que começasse a receber cartas com "ofertas" de cartão visa sem necessidade de ter este depósito de segurança. E existirá para mim, interrogo-me, maior ambição que a de finalmente passar a ser um número (de segurança social) com um historial de crédito???
Bem, com a preocupação de criar e manter um bom historial de crédito, mal recebi a carta com a ordem de pagamento da prestação das despesas efectuadas com o cartão, apressei-me a mandar o cheque no envelope que tinham enviado. Umas boas horas mais tarde, fiquei atordoada porque tinha a certeza que não tinha colocado o selo no envelope e eu não fazia a mínima ideia se o envelope era pré-pago ou não. E continuo inclinada a pensar que o envelope não era pré-pago. Não tenho visto disso aqui.... Mas hoje confirmei que o cheque chegou a bom porto e que o meu crédito está a florescer. Agora, ficarei na dúvida existencial até ao próximo extracto para ver se o envelope é pré-pago ou não. Provavelmente, virá uma despesa de 41 cêntimos para eu liquidar.
Pelo que percebi, quanto maior for o valor do credit score mais facilmente se consegue obter crédito para compras a prestação porque o vendedor sabe que 'não os deixaremos pendurados'. Por outro lado, os juros aplicados variam em função do credit score, por isso, nem me passa pela cabeça comprar algo a prestação nos próximos tempos.
- Maggs -

Wednesday, September 12, 2007

Oásis


Há um grito que não ecoa.
Há uma dor que não mitiga.
Há um olhar que não acontece.

Porém, no recesso da alma,
tudo se apazigua,
tudo se harmoniza,
tudo faz sentido.

Há uma voz que chama.
Há um odor que inebria.
Há uma mão que guia.

- Maggs -

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Tenda no deserto do Sahara
foto de Dan Heller

No campo de batalha...

"Que é isto? Vou cair? As pernas tremem-me?", disse de si para consigo, e caiu de costas. Reabriu os olhos na esperança de ver o resultado da luta dos franceses com o artilheiro e de saber se sim ou não este fora morto e se as peças tinham sido tomadas ou salvas. Mas nada mais viu. Por cima da sua cabeça nada mais havia além do céu, um céu muito alto, não claro, imensamente alto, onde erravam tranquilamente pequeninas nuvens cinzentas. "Que calma, que paz, que majestade!", pensava. "Não era assim aquando da nossa louca corrida, no meio dos gritos e da batalha; não era assim quando, o furor e o meto pintados no rosto, o francês e o nosso artilheiro disputavam entre si o taco da peça; então não havia, como agora, nuvens errantes neste céu profundo e infinito. Como é que eu nunca tinha visto isto, este céu sem limites? E que feliz me sinto de o ver finalmente. Sim, tudo é vaidade, tudo é mentira, à excepção deste céu sem fim. Não há nada, absolutamente nada, além dele. E até mesmo isto não existe, nada existe senão a calma e o repouso. E Deus seja louvado por isso mesmo!..."
in Guerra & Paz
_____________
Leão Tolstoy na sua sala de trabalho - óleo sobre tela por Ilya Repin

Tuesday, September 11, 2007

Causas pessoais

Hoje, no programa Fresh Air, da National Public Radio, ouvi uma entrevista muito interessante. A apresentadora do programa, Terri Gross, entrevistou o médico psiquiatra Charles Reynolds, da Pittsburgh University Medical School, que é especialista em depressões em pessoas com mais de setenta anos.
Ele apresentou a viúvez, a reforma ou o abrandamento de uma vida activa, o aumento da dependência nos outros, entre outros motivos, como causas de depressão em idosos, tendo agora publicado um livro que pode servir de guia aos familiares no sentido de poderem reconhecer os sintomas. Segundo ele, estas pessoas não têm uma natureza depressiva, estando num processo de adaptação a uma nova realidade, por isso, se forem bem acompanhados poderão ultrapassar esta situação e conseguir uma vida com dignidade.
Ele estava a fazer o internato em psiquiatra quando o seu avô, na altura com oitenta e nove anos, suicidou-se com uma arma de fogo. Ele descreveu o avô como uma pessoa que foi sempre muito activa e que nesta fase da vida dele encontrava-se muito fragilizado fisicamente, por motivos de doença, e que entrou num quadro clínico de depressão que não foi detectado a tempo. Charles Reynolds dedica-se a esta área há vinte e cinco anos. Sim, esta é uma causa pessoal.

Ao ouvir isto, lembrei-me de outra história de causa pessoal, provavelmente já romanceada pelo tempo, mas que me fazia sentir especial sempre que entrava pela porta principal do Royal Marsden Hospital. Este hospital tem o nome de William Marsden, médico, cuja esposa faleceu com cancro. Em 1851, ele funda o Free Cancer Hospital, hoje Royal Marsden Hospital que em parceria com o Institute of Cancer Research são nomes de referência na área de Oncologia.
- Maggs -

A maioridade

Não me lembro se chovia nessa tarde, mas, em casa, sentíamo-nos como se estivessemos debaixo de uma chuva miudinha e persistente.
Cruzámo-nos no corredor, as tuas mãos procuraram as minhas mãos que, muito provavelmente, deveriam estar frias.
O meu olhar ficou preso no teu olhar e ficámos assim algum tempo, que pode ter sido um instante, que pode ter sido uma eternidade.
Disseste-me: "Ganha asas e voa! Há outras auroras para veres e viveres."
Assim fiz, voei.
- Maggs -
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Amanhecer no deserto da Namíbia

Monday, September 10, 2007

Paragem de autocarro

Olhou para o relógio. Começava a arrepender-se de ter decidido esperar pelo autocarro em vez de fazer o percurso de quinze minutos a pé até ao bloco de apartamentos onde estava a viver desde que chegara à cidade. Puxou novamente a gola do casaco de encontro ao pescoço, tentando afastar o vento frio que teimava em entrar pela abertura do casaco. "Devia ter trazido um cachecol", pensou. Ainda não se adaptara à cidade e ao local de trabalho, por isso, a expressão triste e ligeiramente perdida no seu olhar. Lembrou-se da troca acesa de palavras entre dois colegas, devendo-se tudo a um mal-entendido. Como palavras inofensivas, ditas com uma entoação dura, podem ferir uma pessoa. Na sua opinião, se os colegas tivessem procurado conversar calmamente teriam chegado à mesma conclusão que ela - que tudo não passara de um mal-entendido. "Mas porque é que as pessoas não procuram comunicar-se melhor?". Nisto, baixou o olhar, com as mãos ainda agarradas à gola do casaco bem perto do pescoço, e reparou no olhar atento de uma criança, dos seus quatro anos, que, provavelmente, tentava perceber o porquê de tantas rugas de preocupação na sua testa. Forçou um sorriso mas desistiu logo. "Não tenho jeito com crianças mesmo. Ficam sempre sérias a olhar para mim. ... Ah, finalmente o autocarro!" Ela entrou e sentou-se defronte à criança e à mãe, na esperança que agora fosse diferente, que agora esta criança lhe desse, pelo menos, o vislumbre de um sorriso. A criança continuava a olhar para ela de forma insistente e, hesitante, ela tentou sorrir novamente. Um sorriso começa a bailar nos lábios da criança, aumentando para um gargalhar contagiante que a mãe lhe disse, admirada: "qual é a graça? bem que a tua mãe gostaria de dar uma gargalhada dessas!". E as rugas de preocupação desapareceram e ela sorriu descontraidamente; não chegou a gargalhar também por pura inibição. Ao ouvir essa risada tão saudável, ela interrogou-se "Até que ponto ao deixarmos de ser crianças, perdemos a confiança nos outros e os mal-entendidos começam? O olhar desta criança é tão límpido e a sua gargalhada tão cristalina... Não há lugar para mal-entendidos!". Saiu na paragem seguinte, sentindo-se bem consigo própria e o seu andar tornou-se leve, quase nem sentindo o chão sob os seus pés. Entrou na rua onde morava e à porta do prédio vê a sua vizinha. Pensou logo: "Ai se ela me vem chatear novamente..." mas o riso contagiante da criança ecoava ainda nos seus ouvidos, por isso, sem pensar, sem reflectir, disse: "Boa tarde, D. Amélia. Como tem passado? Hoje, já fez mais frio, não é?"
- Maggs -

Aprendizagem em Londres

Aprendi a amar Londres, durante as minhas ausências da cidade. Por isso, em cada regresso agora - sim, porque são regressos - há uma forte sensação que nunca cheguei a deixar a cidade. Procuro mergulhar na cidade o mais rapidamente possível para deixar de ser mais uma turista e passar a ser mais uma anónima que vive na greater London. Tenho os meus lugares preferidos, que se situam na área de South Kensington, onde estudei durante três anos e vivi um ano e tal. Quantos percursos foram feitos a pé! O objectivo era 'perder-me' naquelas ruas antigas com casas ora em tijolo vermelho ora pintadas de branco com portas negras; entrar por ruas estreitas e ver pequenas lojas, restaurantes; ouvir pessoas a falarem em diversas línguas; ir aos restaurantes italianos da minha predilecção; experimentar comida tailandesa, indiana e os famosos crepes franceses. Mas, o que mais me atrai nessa cidade que é grande e que é suja, principalmente, nos locais de maior fluxo turístico (e.g. zona de Picadilly Circus) e nas estações de metro, são as lojas de flores. Essas lojas são facilmente identificadas porque ou estão na rua mesmo, por exemplo, numa esquina, ou então as flores da loja vêm até à rua, não ficando inibidas. Aprendi a andar mais devagar ao passar por essas lojas, não só pela profusão de cores mas pelos arranjos florais únicos. Em sítio algum, eu já vi arranjos tão lindos que até parece que as flores, isoladas, não teriam brilho nenhum. Foi namorando estas lojas que aprendi a gostar tanto dos girassóis, aprendi a reconhecer o amarelo vivo no meio das outras flores. Sim, Londres é uma cidade grande e suja mas tem flores lindas como eu nunca vi. E, se o hibisco é a flor da minha infância, pelas doces lembranças que me traz à memória, o girassol é a flor da minha idade adulta.
- Maggs -
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fotografia de Lyn Millett

Sunday, September 09, 2007

Chamamento

Fala comigo, mesmo que eu não responda.
Olha para mim, mesmo que eu feche os meus olhos.
Toca-me, mesmo que eu não esteja ao alcance das tuas mãos.

Ausentes um do outro, mas sempre no pensamento.
- Maggs -

Golpe de estado

Este golpe de estado foi diferente. Não houve derramamento de sangue e quem foi deposto, assim que percebeu que estava perante um facto consumado, recompôs-se e entregou, de forma respeitosa e abnegada, todo o seu saber, experiência e sentimentos ao novo líder.



A ideia deste blog surgiu quando estava nos preparativos da minha viagem para os Estados Unidos. Pensei que seria uma maneira interessante de descrever os 'choques culturais' que iria vivendo. Além disso, sentia que não teria a oportunidade de escrever de forma exaustiva a todos os meus amigos sobre o que iria observando aqui. E um blog presta-se a isso, principalmente porque podemos adicionar uma imagem, etc...
No entanto, parece que a ideia inicial de posts descritivos sobre o american way of living passou para segundo plano porque, inadvertidamente, abri uma porta que estava encerrada há muitos anos. Neste momento, já não mando aqui, limitando-me a ser o veículo de transmissão do que todas essas vozes têm para dizer ao fim de tantos anos de clausura.
Terei o direito de vos pedir que sejam pacientes e que dêem a este novo líder uma oportunidade?
- Maggs -

Saturday, September 08, 2007

Logo mais, temos cuscuz com mel

Estava na sala de aula há menos de dez minutos e a impaciência já o dominava por completo. Afasta ligeiramente a cadeira, os braços cruzados sobre a mesa e apoia o queixo nas mãos que repousam uma sobre a outra. Tenta prestar atenção ao que a professora diz mas o seu pensamento está electrizado e ele não consegue compreender o que ela está a falar, no seu característico tom sério e compenetrado. Volta a sentar-se direito e o olhar foge para o que se passa lá fora. As janelas grandes da sala de aula permitem-lhe ter uma panorâmica geral do jardim defronte da escola primária. A sua impaciência nada tem a ver com a possibilidade de poder estar lá fora a brincar. Receando que a professora o chamasse à atenção, prende novamente o olhar nela e percebe vagamente que ela está a falar de multiplicação e divisão. Olha para o tecto, pensando "isso já eu sei! que bem que a minha mãe me explicou isso". Estavam os dois sentados na mesa da cozinha e a mãe tinha ido buscar a lata onde coloca os vários tipo de feijão, cada tipo no seu saco individual. Tinham passado a tarde de Domingo a multiplicar os feijões e depois a dividi-los. Claro que depois ela lhe tinha explicado a maneira "certa" de fazer as contas no papel. "Não posso falar em feijões, não é?" Ela tinha-lhe dito que era para ele visualizar melhor os números, isso ele sabia. O olhar prende-se agora no relógio de parede, todo ele branco com ponteiros e números negros, por cima do enorme quadro de ardósia que ocupava praticamente toda a parede. "Ainda faltam 20 minutos! Saio da escola, passo pela casa do Zé e toca de correr até à praia Negra. O Manel anda a gabar uma bola de futebol que o pai lhe trouxe da América, que é leve e que tem umas estrelas douradas! Queria tanto poder dar uns toques nessa bola e ver se consigo fazer aqueles dribles todos..." E ele sonhava. "O pessoal depois costuma ir tomar banho de mar mas eu não vou fazer isso. Eles que me chamem de menino da mamãe. Não me chateio. Eu sei que a minha mãe não gosta. Ela fica muito preocupada, por sermos só crianças, sem nenhum adulto por perto. A minha mãe..." Ele tinha noção do enorme sacrifício que ela fazia desde que estavam só os dois, mais a avó. Tinha ouvido uma conversa entre a mãe e a avó e ela dizia "pelo menos é só um filho." Sorriu, pensando nela. "Ela nem é de brigar. Só me pede que seja sempre dedicado em tudo o que faça e que seja responsável." Dá o toque de saída e ele sai disparado da escola mas em vez de fazer o caminho que o levaria até à casa do Zé, vai directamente para a sua casa. Ao entrar pela porta da cozinha, encontra a mãe sentada à mesa, a conversar com a avó. A mãe olha para ele incrédula, dizendo: "em casa? então não te percebi aos cochichos com o Zé sobre o vosso grande jogo de futebol hoje?" Ele tira a mochila das costas, coloca-a na cadeira que está perto da porta, dá um beijo à avó e chega-se para perto da mãe. Abraça-a fortemente pelo pescoço e diz-lhe: "decidi que era melhor ficar aqui." Ainda abraçado a ela e com o rosto escondido nos cabelos dela, diz baixinho "como gosto de ti, minha mãe". A mãe, emocionada, dá-lhe uma palmada firme e carinhosa nas nádegas, afasta os seus braços, ainda pequenos e frágeis, e com um largo sorriso diz-lhe "eu sei que gostas de mim e nós - a tua avó e eu - também gostamos muito de ti. Mas tens de aproveitar a tua infância! Vai já a correr ter com o Zé! Mas, para além de teres cuidado, sabes que tens de estar de volta a tempo de tomares um bom banho e fazeres os trabalhos de casa. Para lanche, vou fazer cuscuz para comermos com o mel de cana-de-açúcar que a tua avó trouxe."
A porta da cozinha fecha-se alegremente e lá vai ele a correr ter com o Zé.
Ai os toques que ele iria dar na bola nova que o pai do Manel tinha trazido da América!
- Maggs -
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O cuscuz, em Cabo Verde, é tradicionalmente confeccionado com farinha de milho e cozido a vapor num binde. O binde é feito de barro e tem a forma de um vaso com buracos na base, que é arredondada e por onde passa o vapor de água.

Friday, September 07, 2007

Para a Sãozinha Fonseca-Fragoso

Despedida.mp3

A minha cunhada que - para mim -
é minha e de mais ninguém;
que me apazigua a alma com a sua voz melodiosa e cheia de paz;
que me olha de modo firme e decidido;
que me faz rir com a sua maneira alegre de falar;
que canta maravilhosamente ...

E a nossa amizade que começou quando ela me foi buscar a casa dos meus tios e levou-me para um passeio até Cape Cod, onde fomos ver o mar e comer um genuíno clam chowder.

Esta morna, despedida, é da autoria de Eugénio Tavares.

E a voz... essa voz, é, obviamente, da minha cunhada.

- Maggs -

A pétala

Abraçou o travesseiro e procurou uma posição mais confortável. Entreabriu os olhos, fechando-os novamente quase que de seguida. Um sorriso bailava nos seus lábios. Apertou ligeiramente o travesseiro como se fosse alguém que estivesse ali ao lado, como se ela quisesse ter a certeza que estava alguém aí ao lado. Claramente, ela conseguia sentir a sua presença, ele tinha de estar ali! Voltou a adormecer.
Ele olhava para ela com ternura e zelava para que ela dormisse serenamente. Era isso que ela sonhava, imaginava e sentia que estava mesmo a acontecer. Porém, ele começa a ficar irrequieto, evidenciando uma das características que a seduzia nele; ela que mantinha sempre uma postura rígida, principalmente quando estava com outras pessoas por puro medo de se expôr. Não fugindo à sua natureza, ele não consegue ficar deitado tranquilamente ao lado dela. Cruza as pernas, descruza-as, volta a cruzá-las. Depois, decide-se a cruzar os braços mas mesmo assim, não consegue ficar quieto por muito tempo. Apesar da sua desinquietude, há muita ternura e carinho no seu olhar. Ele deseja que ela adormeça tranquilamente. Na sua mão esquerda, uma rosa, plena no seu esplendor e ciente da sua beleza, exala um odor que só é perceptível aos apaixonados. Afaga com suavidade a face dela, percorrendo-a com as pétalas da rosa, inebriando-a e mergulhando-a mais no seu sono. As suas mãos esquerdas encontram-se e os dedos se entrelaçam e a rosa fica entre eles, orgulhosa por finalmente unir os amantes. Finalmente, ele consegue apaziguar a sua irrequietude. Ficam de mãos entrelaçadas e adormecidos.
Tudo não passou de um sonho.
Ela levanta-se e nem nota que no meio dos lençóis está uma pétala de rosa.
- Maggs -

Thursday, September 06, 2007

A separação

Tive medo...
mas não era legítimo este sentimento?
Perante mim, abria-se a imensidão do desconhecido.
Preferi ficar no cais e nossas mãos, inicialmente unidas, foram-se apartando e eu não consegui dar o salto e acompanhar-te.
Perdoa-me a falta de ousadia.
Mas eu sei que me compreendes.

Provavelmente, outros caminhos estão trilhados para mim, porém acompanhar-me-ás sempre.
- Maggs -

Monte Cara ao longe, S. Vicente, Cabo Verde
(fotografia de Maguy-Mãe)

Podemos conversar?

Se eu ficar aqui, nesta esquina, ele não há-de escapar. Tem de passar por aqui a caminho de casa. E quando ele estiver a aproximar-se, vou para o meio do passeio, assim ele não terá hipóteses de pretender que não me viu. E farei isso com tamanha arte que não lhe darei tempo para mudar de passeio. Sim, esta esquina é o melhor sítio para apanhá-lo e ... e conversarmos. Não consigo continuar assim. E o melhor é falar claramente, pedir-lhe com consideração mas sem me humilhar. Também tenho a minha dignidade! Bem, então deixa-me pensar melhor como é que vou iniciar a conversa. Digo, 'olá. tudo bem?' ou 'há quanto tempo! o que tens feito?' mas assim já estou a querer saber muito. Vou ficar pelo 'olá. tudo bem?', dito de forma descontraída. Aí vem ele! O que faço agora? Se calhar é melhor eu tentar isto noutro dia. Sim, é melhor. Não, ele já me viu. Bem, então deixa-me aproximar-me e tentar parecer que estou aqui de forma casual. Sorrio, sei que foi de forma suplicante, e pergunto-lhe de chofre: 'deixas-me ir brincar com o teu carro de lata?'.
- Maggs -


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Estes carros de lata fazem parte da minha infância em Cabo Verde. Eles são feitos a partir das latas de azeite, manteiga, etc. e os seus criadores fazem autênticas obras de arte a partir do 'nada'. Não sei se as crianças de hoje acham interessante puxar, por um cabo de metal, estes carros mas eu ainda continuo encantada com eles. Na minha próxima viagem a Cabo Verde tenho de arranjar um, trazendo um pouco da minha infância aos dias de hoje.

Wednesday, September 05, 2007

A prenda

O laço, em vermelho garrido, contrastava alegremente com o papel de embrulho em branco-alvo. A espera tinha sido longa e agora lhe parecia que lhe dava um prazer particular em contemplar um pouco mais o embrulho, em vez de o abrir rapidamente. Provavelmente, iria guardar o laço tentando não o estragar ao desembrulhar a prenda. Mas este laço não iria para a caixa dos laços e papéis de embrulho que são depois re-utilizados para outras prendas. Teria de o colocar num lugar especial, onde pudesse simplesmente deitar-lhe o olhar quando passasse por perto. De olhos bem abertos, continuava a admirar o embrulho, mantendo uma certa distância e assim poder contemplar melhor o arranjo. E como aquele tom de vermelho lhe encantava. A pessoa que estava ao lado diz-lhe "Então? Esperaste tanto tempo e agora não abres a prenda?". Esta voz quebrou o encanto mas rapidamente ele foi recuperado porque não há deleite maior que a antecipação de algo bom nas nossas vidas? ... Ainda mais que o evento em si. Tinha esperado tanto tempo por esta prenda. Esta em particular. Esta que lhe possibilitaria intentar novos vôos, novos conhecimentos, novas experiências... Olhou para o seu interlocutor e os seus olhos brilhavam, todo o corpo vibrava de alegria. Tocou suavemente nas suas mãos, apertando-as ligeiramente, beijou-lhe carinhosamente na face e disse-lhe, sorrindo:
"Abro a prenda mais tarde. Vamos até lá fora. Está um dia lindo e ainda vamos a tempo de ver o pôr-do-sol."
- Maggs -

Tuesday, September 04, 2007

Korda Kauberdi

Grupo Korda Kauberdi, à porta do cinema Éden Park, Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde


Os mais velhos do que eu terão mais recordações do tempo do grupo de teatro Korda Kauberdi, sob a direcção do meu pai Francisco Fragoso. Melhor, terão outras recordações.
Eu tenho as minhas, bem marcadas, apesar de na altura estar na minha infância. Por terem sido vividas através do olhar de uma criança, elas tornam-se especiais porque a criança dá sempre o seu colorido, a sua interpretação muito própria e de acordo com a "experiência de vida" de uma pessoa com menos de dez anos. A mais doce e agradável é a seguinte:
Eu fazia os possíveis por adormecer, na parte de trás do nosso volkswagen carocha amarelo, durante o percurso entre o jardim-escola da Gulbenkian, na Achada de St.º António - local dos ensaios - até à nossa casa na rua do Hospital, no Plateau. Hoje, podemos apanhar trânsito (dentro da realidade de Cabo Verde) mas naqueles tempos o percurso fazia-se rapidamente. Claro que não conseguia adormecer mas o meu pai não dizia nada (ou se pensava, não o exteriorizava) e levava-me ao colo até me deitar na cama. Lembro-me de estar com a cabeça recostada no ombro dele e sorrir. Todos nós sabíamos que a Maggyzinha estava bem acordada mas todos éramos cúmplices nesta minha pequena 'partida'. Mas não é disto que a vida é feita? Destes momentos que depois duram para toda a vida. Esta recordação apareceu-me do nada e decidi perpétua-la neste post.
De certa maneira, esta é a minha homenagem ao Korda Kauberdi, no olhar de uma criança com menos de dez anos.
- Maggs -

Sunday, September 02, 2007

Rituais de celebração

Desde que aqui estou, nesta América profunda, tento observar as diferenças no quotidiano das pessoas daqui em relação ao que estou habituada. A possibilidade de observar estas diferenças in loco é que fazem valer a pena estar tão longe daquilo que estou habituada; a oportunidade de compreender, absorver e respeitar a diversidade. O que me surpreende mais são os 'rituais de celebração' dos eventos ao longo do ano. Ainda não chegámos ao grande momento do ano - o Natal - mas já consigo perceber que estes rituais tornam-se também uma forma de interacção no local de trabalho.
Na passada 6ª feira, logo pela manhã, ao entrar num dos corredores de acesso do departamento, o meu olfacto não me enganou: cheirava a pipocas! Viro à esquerda e entro no corredor principal do departamento, onde estão três dos quatro aceleradores lineares do departamento de radioterapia e vejo pequenos sacos transparentes de plástico com pipocas e no meio do branco amarelado das pipocas - na certa, eram pipocas com açúcar - cores vivas sobressaíam. Depois, consegui perceber que essas cores vivas correspondiam aos pequenos chocolates m&m's. Que estes pequenos sacos seriam depois oferecidos pelos técnicos de radioterapia aos doentes, após o tratamento, já eu sabia. Nos outros rituais de celebração que já presenciei, havia sempre algo doce para se oferecer aos doentes. Agora, a minha dúvida era: que celebração seria esta que me estava a escapar? Mas, sem ter a necessidade de perguntar, consegui deslindar o caso. Estes rituais de celebração são levados a preceito pelas pessoas, i.e. como as enfermeiras e os técnicos de radioterapia têm como fardas conjuntos de calças e camisas que podem ser de qualquer cor, motivo e feitio, nestas ocasiões, eles aparecem trajados 'a rigor'. E o evento a celebrar é o início da época do futebol americano e eles usavam camisas vermelhas e brancas com o nome 'Nebraska' ou da equipa que apoiam. Pelo S. Valentim, as técnicas de radioterapia usaram camisas cheias de corações, pela Páscoa, vi camisas com coelhos, etc etc. Mas é um facto que estas roupas são muito mais agradáveis ao olhar que o tradicional branco.
Obviamente, estes rituais de celebração são sempre acompanhados por comida e bebida "típicas" americanas. Por isso, hoje trouxe do supermercado milho e óleo vegetal e deliciei-me com as minhas pipocas salgadas, que é como eu gosto delas.
- Maggs -

À caça do 1%

Tenho andado incansavelmente à caça do 1%.
Dei por mim tão embrenhada neste pequeno rectângulo de investigação que após longas horas de olhos fixos no monitor do computador, senti que houve um EU que se dissociou de mim. Este EU olhava para mim de forma persistente, impondo a sua presença de tal forma que eu não via mais o monitor mas somente estes (meus) olhos fixos em mim.
Este EU coloca-me sempre em apuros: chama-me insistentemente para irmos ver a vida lá fora; para não descurar a minha grande causa; para não mergulhar-me de tal forma no 1% que esqueça a minha ambição de poder contribuir que pessoas com cancro nos países em desenvolvimento consigam ser tratadas ao nível dos 5-10% - correcção, que sejam tratadas!
Mas consigo convencê-lo que iremos muito em breve estar à beira-mar e sentir o mundo a vibrar e que prometo, prometo, prometo empenhar-me mais no meu compromisso de contribuir com os meus conhecimentos para a luta contra o cancro nos países em desenvolvimento.

E como todos os meus EUS querem estar à beira-mar e sentir o mundo a vibrar...
- Maggs -

Deserto

Por onde andas?... eu não sei.
Mudas de forma, de cor, de tom.
Escapas-me por entre os dedos das mãos que nem a areia quente do deserto.
Viajantes imaginários que vou encontrando nesta minha demanda dizem-me que estás bem; que a última vez que souberam de ti estavas no deserto (da minha alma); que estás como queres e como gostas de estar.
Sei que estás bem longe - lá no deserto - mas quero continuar a pensar que estamos juntos, apesar de vivermos em mundos diferentes.
- Maggs -

Deserto do Sahara - foto de © Eugene Reshetov