Saturday, December 29, 2007

Perguntar ao verbo

O professor Manso Gigante foi o meu professor de Português no 8.º e 9.º anos, no Externato Júlio César, na Pontinha. Na minha memória, a sua postura distinta e um sorriso sarcástico nos lábios. Quando ele foi meu professor, já tinha atingido uma idade que justificava o sorriso zombeteiro, quase constante, nos lábios.
No Externato, os alunos esperavam pelo professor na sala, de pé, e só se sentavam depois da indicação do professor. Por isso, lembro-me do professor Manso Gigante a entrar na sala de aulas, de fato, com um exemplar da obra em análise, o livro dos sumários e um caderno pessoal. Ficava sentado a aula inteira, com os dedos entrelaçados sobre a mesa, olhar penetrante.
Nesses dois anos, a língua portuguesa deve ter sido a disciplina mais estudada por mim porque cada aula era um autêntico exame - era exposta à turma, praticamente em todas as aulas. Aprendi a desnudar as frases, perguntando ao verbo: "o quê? a quem?" para saber os complementos directo e indirecto. Aprendi a dialogar com a gramática, a descobrir os sentidos escondidos em paragráfos, inicialmente, herméticos para mim. Igualmente, aprendi que as minhas fronteiras pessoais podiam ser renovadas todos os dias, podiam ser redesenhadas e aumentadas todos os dias - um exemplo do que deve ser um excelente pedagogo.
A expressão "desaguar à Fragoso" era proferida por ele sempre que chegava a minha vez de responder a uma pergunta que alguns alunos não tinham conseguido responder. A procura da resposta correcta era feita chamando os alunos por ordem alfabética, por isso, quando se aproximava da letra 'M', eu sentia que o meu nível de adrenalina aumentava. Por vezes, não soube a resposta e ele com um sorriso irónico tentava espicaçar-me fazendo-me sentir mal por não saber a resposta. O seu objectivo nunca foi o de humilhar-me mas sim fazer-me ultrapassar os meus próprios limites e por mim mesma.
Penso amiúde no professor Manso Gigante. O seu olhar acutilante, o seu sorriso e a sua forma de falar acompanham-me ainda hoje porque nunca duvidei que ele me estivesse a ajudar a ultrapassar os meus próprios limites. Os professores marcam-nos para a vida. Guardo excelentes recordações de muitos professores mas muito especialmente do professor Manso Gigante.

4 comments:

Anonymous said...

é engraçado a descrição que faz do professor Manso Gigante, fiquei surpresa por encontrar aqui alguém que tb conhecia o professor, gostei imenso da descrição e lembro-me tb de ele chamar a alguns pedaços de asno.

Anonymous said...

O professor Manso Gigante também foi meu professor no Externato Julio César, na Pontinha. Li a tua descrição das mãos entrelaçadas com um sorriso, mas a expressão que mais gostei utilizada por ele era a do "pateta alegre", a qual eu ainda hoje a utilizo. SC

Francisco Barreto said...

O Professor Manso Gigante foi meu professor de Português nas Oficinas de São José, nos Salesianos em Lisboa no longínquo ano lectivo de 1977-78, estava eu no 9º ano. Pelas descrições que aqui vejo, só pode ser ele. Grande admirador do Camões, grande pedagogo, impunha um grande respeito sem ter de levantar a voz. Aconselhava sempre bem, ensinava ainda melhor. Muito exigente mas compreensivo. Dos melhores professores que tive.

Francisco Barreto

Lizard said...

Também tive o prazer de o ter como professor. Fez ver a um miúdo de 14 anos quão magnífico “Os Lusíadas” são. Muito nos ensinou sobre português, latim e história ao ler “Os Lusíadas”.
Pedaço de asno e “anda a pastar” são de facto imagens de marca🤣