Friday, May 30, 2008

Marulhar das ondas

Mais um fragmento da história da D. Bia



Era uma senhora petite. Caminhava ligeira pelas ruas da cidade de Mindelo no seu passo pequeno e rápido, postura erecta e olhar decidido. As agruras da vida nunca lhe tinham tirado a capacidade de gargalhar. Por sentir o dom da vida a cada momento, os olhos de D. Bia bailavam constantemente de alegria. Esse júbilo nunca esmoreceu, nem quando descobriu, aos 24 anos, que o seu casamento era uma falácia e que tinha sido mais uma a cair na cantiga melodiosa de um marinheiro que aportava algumas vezes por ano em S. Vicente. Chorou silenciosamente mas o brilho nos olhos nunca chegou a desaparecer. E porque deveria? Tinha conseguido trazer ao mundo seis crianças saudáveis e que hoje só lhe davam alegrias!

Todavia, havia uma altura do dia onde o andar se tornava pausado, tranquilo, sem pressas. Pela manhãzinha, D. Bia fazia o percurso da avenida marginal até à praia da Laginha. Iniciara esse ritual no dia seguinte à partida do último filho para o estrangeiro e os amigos e conhecidos, ao cruzarem com ela, limitavam-se a cumprimentá-la não ousando quebrar o seu recolhimento. De olhar brilhante e sorriso bailando discretamente nos lábios, respondia ao cumprimento e repousava novamente o olhar na direcção do mar. Avançava vagarosamente pela marginal, em direcção à Laginha. Defronte ao mar, permanecia sentada por um largo tempo, ouvindo atentamente o marulhar das ondas, como se trouxesse novas dos filhos. No seu íntimo, ela ia respondendo. Falava das saudades, lembrava-se de algum episódio da infância dos filhos, agradecia aquela carta ou encomenda.

Eram esses momentos que lhe davam força para que o tal brilho nos olhos não esmorecesse nunca. Não exteriorizava os seus pensamentos mais íntimos, mas a dor da saudade consumia o seu pequeno ser muito mais do que a dor do fracasso do seu casamento ou mesmo das inúmeras dificuldades em criar e educar os seus filhos. Sentada defronte ao mar, abstraia-se do que a rodeava e imaginava os filhos sentados à volta dela. Ela protegia-os, mimava-os e deliciava-se porque via-os como quando eles ainda eram crianças e estavam sob a sua asa materna. Depois de saciada a saudade, levantava-se e fazia o percurso de regresso, parando no mercado para as compras do dia.



Maggs

George Bailey

George Bailey, abrindo os braços para mostrar ao empregado da loja o tamanho da mala que queria comprar para depois percorrer o mundo...



Desde criança, George Bailey sonhou em calcorrear o mundo, explorando novas terras e construindo grandes obras. O que ele não queria era ficar para sempre em Bedford Falls, uma cidade pacata dos Estados Unidos da América. Contudo a vida vai-lhe pregando partidas e ele vai adiando sempre o seu sonho, acabando por chegar à casa dos quarenta a fazer projectos em papel e a assumir o negócio do pai, uma espécie de cooperativa de habitação, implicando lidar com empréstimos, juros e a ficar confinado num escritório o dia inteiro. Na sua ânsia de partir e não criar laços, recusou-se a admitir que se apaixonou por Mary, a menina que virou mulher e que foi sempre apaixonada por ele. Rendeu-se ao amor, casou-se com Mary e tiveram quatro filhos, vivendo numa casa enorme e decadente que não podia ser devidamente restaurada por falta de dinheiro.

Na véspera de um Natal, endividado e sem saída, num acto de desespero, George pondera o suicídio porque "valia mais morto que vivo". No momento em que ele se encontra preparado para se atirar ao rio, o seu anjo da guarda cai à água e, instintivamente, George mergulha para o salvar... Porque foi o que ele fez sempre em toda a sua vida: salvou o irmão de morrer afogado quando eram crianças; salvou o farmacêutico de ir preso por ter dado o medicamento errado, visto estar transtornado ao saber da morte do filho; com o negócio herdado do pai por força de circunstâncias várias, salvou muitas famílias de irem viver nas barracas do maléfico homem de negócios Henry Potter...

It's a wonderful life (em português, o filme ficou conhecido sob o título "Do céu caiu uma estrela"), foi realizado por Frank Capra em 1946, com James Stewart e Donna Reid nos principais papéis. O filme surgiu numa altura em que era importante elevar o espírito de entre-ajuda e de reconciliação, após a experiência traumática da Segunda Guerra Mundial. Uma história simples, contada de trás para a frente, i.e. o filme começa no momento em que George pensa no suicídio e Deus decide chamar um anjo para o salvar. O anjo Clarence, há mais de duzentos anos à espera de ganhar as suas asas, é escolhido e Deus mostra-lhe os momentos fulcrais da vida de George, compreendendo-se porque é que ele quer tentar o suicídio. O anjo Clarence dá então ao George a oportunidade única de saber como é que as pessoas que lhe eram próximas teriam vivido se ele não tivesse sequer existido... Já que ele dizia que valia mais morto que vivo...


É um dos meus filmes obrigatórios do mês de Dezembro, visto passar-se na época natalícia. Mais do que isso, é o meu filme favorito. Quiçá porque me revejo vezes sem conta no George Bailey: uma ânsia de partir, de estar sempre em viagem e de sentir que há sempre algo para observar, sentir e vibrar. Na verdade, todos temos um pouco do George Bailey: uma vontade, tantas vezes indómita que nos deixa esgotados, de partir à busca de novos mundos.


George Bailey aprendeu com a oportunidade dada pelo anjo Clarence que o seu mundo, que o seu suporte era a família e os amigos.
Maggs

Monday, May 26, 2008

Objectos de afecto

Esta boneca vestida com um traje típico das mulheres africanas, feita em pano, meia collant e arame, faz parte do meu mundo desde Agosto de 2003.
Estávamos num passeio habitual pela Cidade Velha, na ilha de Santiago. Fiquei encantada com o colorido dos trajes, com a forma engenhosa como as bonecas tinham sido feitas. A minha tia Isabel, fluente em wolof, aproximou-se da venda dos Senegaleses e iniciou o regateio do preço.
Mera espectadora de um diálogo que não conseguia entender, pude contudo pressentir o crescer de um misto de alegria e de tristeza por parte da vendedora.
Escolhi a boneca e aí a tristeza da vendedora pareceu dominar a alegria por ter feito negócio. Afectuosamente, acariciou e beijou a boneca, dizendo algo em wolof. Fiquei ávida pela tradução e a minha tia disse-me que ela se tinha despedido da boneca e que lhe tinha desejado felicidades.
A senhora tinha deixado o seu país, vendendo artesanato do Senegal na Cidade Velha, uma cidade que vive essencialmente dos turistas. Tinha a sua banca de venda, fazia pela vida, quem sabe tivesse deixado família próxima na terra-mãe. A sua tristeza foi genuína por ter de deixar ir algo que tinha sido criado nas suas mãos.
A boneca tornou-se, naquele instante, um objecto de afecto e tem-me acompanhado por todas as cidades onde tenho vivido desde então. É um objecto de afecto por esta mulher, por África (meu continente de eleição), por mim que sou filha da diáspora e nela me encontro. Os objectos de afecto nada mais sendo do que uma concretização material de sentimentos que nos ligam a alguém, algo...
Maggs

Friday, May 16, 2008

Prosperidade

Prospect, ainda um cachorrinho



"Prospect, for prosperity", foi assim que o meu irmão e a minha cunhada justificaram o nome dado ao cão que faz parte da família há quase um ano. Pertence a uma raça que me causa grandes dissabores quando tento dizê-lo: dachshund. Lá me vão educando sobre as características desta raça, sendo a sexta preferida pelos norte-americanos.

Tem um porte um tanto ou quanto felino que contrasta com o seu tamanho pequeno. Olha nos olhos das pessoas e é muito atento, especialmente quando a comida está presente. Se estamos em divisões diferentes da casa, gosta de ir "controlando" onde cada um está, não vá perder um. Agora mesmo, decidiu que queria dar uma soneca. Aproximou-se de mim, saltou para o meu colo e está num sono solto enquanto escrevo estas linhas sobre ele.

Nunca fui grande fã de caninos mas este conseguiu cativar-me. Como diz o meu irmão "Ele olha nos olhos das pessoas!". Não há maneira de resistir a esse olhar...


Já me abandonou... É que aqui chegou o cheiro a almoço!



Maggs

Wednesday, May 14, 2008

Farol

Farol D. Maria Pia, Santiago, Cabo Verde


Para matar saudades, o meu primo Didi enviou-me hoje várias fotografias da ilha de Santiago. Apreciei esta em particular por me ter feito viajar no tempo até aos ensaios que o grupo infantil Korda Kauberdi tinha no farol, sob a batuta do Djonsa "Farol". Não sei bem porquê mas vi-me como uma das cantoras do pequeno grupo. Como não segui carreira .... não preciso entrar em detalhes sobre as minhas qualidades vocais.
Igualmente, a ideia que o farol transmite: a procura de uma luz que nos conduza a bom porto e por caminhos certos.
Maggs

Monday, May 12, 2008

A partida

Mais uma vez, era chegada a hora da partida. Grande azáfama e o nervosismo que aumentava porque o táxi não chegava para nos levar ao aeroporto. Depois de uma longa espera, apareceu um e o taxista justificando que era a hora do almoço, i.e. das 13h às 14h "é complicado conseguir um táxi"...
Colocámos as duas malas no porta-bagagens, a minha tia e a minha mãe instaladas no banco de trás. Mal fechei a porta traseira do carro, o taxista arrancou. Fiquei especada a ver o carro partir, parando uns cinquenta metros à frente. Caminhei para o táxi e o senhor desdobrou-se em pedidos de desculpas porque não tinha percebido que eu também iria viajar. No banco de trás, a minha tia e a minha mãe numa risada alegre. E eu respondi: "Se calhar, eu é que devo ficar."
Como iria viajar na SATA até Boston, a partida seria no terminal 2. Não vou tecer grandes comentários sobre o terminal... Ainda parece um estaleiro de obras em algumas partes e eu não compreendo muito bem a sua finalidade. Dizem eles que é para vôos domésticos mas eu iria num vôo internacional... E, pessoalmente, não considero nada agradável fazer aquela viagem de autocarro até ao avião...
A escala em Ponta Delgada torna-se, de certa maneira, agradável porque ao fim de duas horas de viagem, faz-se uma "pausa" e exercita-se as pernas numa das salas de embarque do aeroporto. Depois, são mais cinco horas de viagem até Boston. Uma hora depois de termos partido de Ponta Delgada, oiço pelo altifalante: "Srª Margarida Fragoso, por favor, diriga-se a um assistente de bordo." Lembrei-me de uma situação semelhante que tinha vivido há uns anos atrás quando viajei até Londres para visitar uma amiga. Na altura, a notícia não era agradável, por isso, fiquei logo apreensiva. Mas o sorriso simpático do assistente com quem falei, tranquilizou-me logo: tinham uma refeição vegetariana para a Srª Margarida Fragoso mas não sabiam em que lugar ela estava sentada. É que aprendi a minha lição! Ao comprar o bilhete de avião, peço sempre "refeição especial". Desta maneira, sou das primeiras a ser servida e a comida é ligeiramente melhor.
Felizmente, a minha passagem pela Imigração foi tão suave que até estranhei. Na minha cabeça, respostas para mil e uma perguntas que me pudessem fazer. Por outro lado, a passagem pela Alfândega foi um pouco mais emotiva. Um polícia perguntou-me se trazia comida comigo e quantos dólares transportava na altura. Admito que ele apanhou-me desprevenida porque estava completamente esquecida do bacalhau que tinha trazido para o meu irmão mas depois fiz um ar doutoral e frisei que, obviamente, não trazia comida e que trazia pouco dinheiro porque tinha conta bancária nos Estados Unidos porque já trabalhava aqui. É sofrida esta passagem pela Imigração e Alfândega...
Saí tão atordoada que nem vi o meu irmão e a minha cunhada! Mas depois os abraços, a alegria do reencontro fizeram-me esquecer ... esquecer por momentos as saudades daqueles que tive de deixar para trás.
Mas, parece-me que esta é a vida de um emigrante...
Maggs