Ao desembarcar no cais, não podia, não queria acreditar no que estava vendo.
Homens armados, com o olhar de quem sabe o que está a fazer, sem, na verdade, o saber. Mal recebem uma notificação, dizendo que precisavam defender a pátria, lá se iam orgulhosos...
Chamo-me John. Sou jornalista do jornal americano Sun e, neste momento, sou correspondente de guerra no Pacífico. Meu Deus, se os trouxesse aqui para verem no que se transformou Hong-Kong... Talvez não acreditassem!
Numa cidade sinistra, onde as barricadas impõem a sua trágica presença! Onde estão os gritos, a algazarra feliz das crianças?!
Numa palavra ou expressão, onde está a beleza que tanto apreciei há 5 anos quando vim fazer a minha primeira reportagem no Oriente?...
Hong-Kong, colónia britânica, no seio da 2ª Guerra Mundial, servindo de joguete entre potências que, por um lado querem subjugá-la e anexá-la a um grande império, o Japão, e, por outro lado, pretendem mantê-la como uma colónia importante no comércio e tráfico de especiarias do Oriente, a Inglaterra.
Aproximo-me dos correios. Talvez haja algum telegrama para mim.
Quando abro a porta e penetro no edifício, depara-se-me o encarregado dos correios, falando da Guerra que assolava o seu querido Oriente a um senhor de idade que talvez tivesse aparecido lá em busca dum abrigo para a noite que, lúgubre, se aproximava.
O relógio marca 7 horas. Mais um dia se passou. E falando num chinês fluente, inquiri:
- Há algum telegrama para mim? O meu nome é John Madigan.
- Há sim. Agora com a guerra só recebemos telegramas para os oficiais. Acaso é o senhor algum oficial disfarçado?
- Não, não sou. - Porém, como me queria livrar o mais depressa desse homem, num ápice, tirei-lhe o telegrama das mãos e fui-me embora, saindo a correr.
A rua estava quase deserta.
Daqui a pouco começaria a ronda e, por isso, precisava encontrar sem tardar, um alojamento.
Foi fácil. Hong-Kong deixou de ser visitado por turistas, mas sim por mercenários e assassinos que preferem o anonimato, dormindo em cabarés ou outro tipo de esconderijo.
O quarto era do mais miserável. Uma cama velha, uma bacia e uma ventoínha avariada, constituiam o seu recheio e mobiliário.
Sem pressa, abri o telegrama:
"Japoneses aproximam-se
Atacam 25/12/41
Boa sorte"
Amanhã é 25 de Dezembro!
Malditos! Tanta fome de vencer que nem esperam mais um dia para se saciarem!
Malditos! Tanta fome de vencer que nem esperam mais um dia para se saciarem!
Tive um pesadelo. Sonhei com o meu Natal do ano passado. Passei-o com os meus pais e irmãos. Brinquei muito com o meu sobrinho John. Tem 4 anos. Muito inteligente. Ele estava num deserto, sozinho, sem ninguém, mas estava a brincar com o carrinho que lhe dei, feliz. Sim, brincava com uma felicidade enorme! Mas eu intimamente queria que ele saísse dali, pois os japoneses se aproximavam. Gritei. Nenhum som saíu. Estava sufocado. Não conseguia fazer ecoar o meu gritar! E ele, indiferente, continuava entretido e entregue na sua brincadeira. Cada vez mais aumentava a minha aflição, pois os japoneses aproximavam-se assustadoramente.
De repente, o barulho das bombas a cair, a explosão.
- John, John. Por favor, responde-me. Acordei molhado de suor. E sem haver tréguas outra e outra explosão. Levantei-me, aproximei-me da janela e vi... Meu Deus! O que os meus olhos vêm! Mulheres e crianças a gritar desesperadas. Casas a arder. Animais fugindo, cujos ganidos pareciam dizer: "Vocês não têm consciência do mal que estão a provocar."
Gritei alto e chorei. Sim, chorei como não chorava desde criança. De raiva. Sem dúvida nenhuma, eu era uma criança. Talvez, por isso, não atingia o motivo pelo qual os homens lutam, matam-se e só para poderem, quiçá, no fundo dizer "Tenho poder".
Vesti-me e saí a correr como um louco. Tinha uma máquina fotográfica. Tirei fotografias das crianças abandonadas a chorar, de animais mortos com os olhos voltados para o céu, parecendo implorar a Deus como último recurso.
Hoje 25 de Dezembro de 1941, nasce Jesus e morrem crianças e animais...
Para quê? Porquê? Simplesmente não sei...
O ataque terminara. A minha vida terminara, neste instante. Prometi a mim mesmo que ao voltar para a América, escreveria o artigo da maneira como vi o ataque, sem subtilezas. Fotos mostrando o sofrimento e desespero dos que não tinham nada com a Guerra, ilustrariam a reportagem. E abandonaria a minha carreira. Podia trabalhar na loja do meu pai.
Não voltei ao hotel, não suportaria mais. Fui ao cais e comprei o bilhete para Xangai. De lá voltaria de avião, via Paris, para a América.
Senti e ouvi os japoneses a entrarem em Hong-Kong enquanto entrava no barco que me levaria a Xangai.
Sentia-me só e melancólico. Não queria acreditar que no dia de Natal os japoneses tivessem combatido. Não souberam respeitar o nascimento de Jesus. E ele viera espalhar pelo mundo a fraternidade e solidariedade humana.
São cristãos os japoneses? - perguntei-me.
Não soube responder. A minha mente estava bloqueada e eu só queria chegar ao aconchego da casa dos meus pais o mais rapidamente possível, antes do fim de ano.
Talvez conseguisse afastar do meu espírito esse insólito pesadelo e readquirir a confiança na vida. E quem sabe nos próprios homens apesar do que assisti, infelizmente...
- Margarida Fragoso, 9.º ano, Externato Júlio César, 1986 -
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Quando o professor Manso Gigante pediu aos alunos do 9.º ano que escrevessem um conto de Natal para um concurso, decidi que iria escrever algo sobre a guerra e que procuraria um local que tivesse sido invadido no dia 25 de Dezembro. Porquê o jornalista americano? Bem, achei que seria pouco provável um jornalista português em Hong-Kong nessa altura.
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