Estava na sala de aula há menos de dez minutos e a impaciência já o dominava por completo. Afasta ligeiramente a cadeira, os braços cruzados sobre a mesa e apoia o queixo nas mãos que repousam uma sobre a outra. Tenta prestar atenção ao que a professora diz mas o seu pensamento está electrizado e ele não consegue compreender o que ela está a falar, no seu característico tom sério e compenetrado. Volta a sentar-se direito e o olhar foge para o que se passa lá fora. As janelas grandes da sala de aula permitem-lhe ter uma panorâmica geral do jardim defronte da escola primária. A sua impaciência nada tem a ver com a possibilidade de poder estar lá fora a brincar. Receando que a professora o chamasse à atenção, prende novamente o olhar nela e percebe vagamente que ela está a falar de multiplicação e divisão. Olha para o tecto, pensando "isso já eu sei! que bem que a minha mãe me explicou isso". Estavam os dois sentados na mesa da cozinha e a mãe tinha ido buscar a lata onde coloca os vários tipo de feijão, cada tipo no seu saco individual. Tinham passado a tarde de Domingo a multiplicar os feijões e depois a dividi-los. Claro que depois ela lhe tinha explicado a maneira "certa" de fazer as contas no papel. "Não posso falar em feijões, não é?" Ela tinha-lhe dito que era para ele visualizar melhor os números, isso ele sabia. O olhar prende-se agora no relógio de parede, todo ele branco com ponteiros e números negros, por cima do enorme quadro de ardósia que ocupava praticamente toda a parede. "Ainda faltam 20 minutos! Saio da escola, passo pela casa do Zé e toca de correr até à praia Negra. O Manel anda a gabar uma bola de futebol que o pai lhe trouxe da América, que é leve e que tem umas estrelas douradas! Queria tanto poder dar uns toques nessa bola e ver se consigo fazer aqueles dribles todos..." E ele sonhava. "O pessoal depois costuma ir tomar banho de mar mas eu não vou fazer isso. Eles que me chamem de menino da mamãe. Não me chateio. Eu sei que a minha mãe não gosta. Ela fica muito preocupada, por sermos só crianças, sem nenhum adulto por perto. A minha mãe..." Ele tinha noção do enorme sacrifício que ela fazia desde que estavam só os dois, mais a avó. Tinha ouvido uma conversa entre a mãe e a avó e ela dizia "pelo menos é só um filho." Sorriu, pensando nela. "Ela nem é de brigar. Só me pede que seja sempre dedicado em tudo o que faça e que seja responsável." Dá o toque de saída e ele sai disparado da escola mas em vez de fazer o caminho que o levaria até à casa do Zé, vai directamente para a sua casa. Ao entrar pela porta da cozinha, encontra a mãe sentada à mesa, a conversar com a avó. A mãe olha para ele incrédula, dizendo: "em casa? então não te percebi aos cochichos com o Zé sobre o vosso grande jogo de futebol hoje?" Ele tira a mochila das costas, coloca-a na cadeira que está perto da porta, dá um beijo à avó e chega-se para perto da mãe. Abraça-a fortemente pelo pescoço e diz-lhe: "decidi que era melhor ficar aqui." Ainda abraçado a ela e com o rosto escondido nos cabelos dela, diz baixinho "como gosto de ti, minha mãe". A mãe, emocionada, dá-lhe uma palmada firme e carinhosa nas nádegas, afasta os seus braços, ainda pequenos e frágeis, e com um largo sorriso diz-lhe "eu sei que gostas de mim e nós - a tua avó e eu - também gostamos muito de ti. Mas tens de aproveitar a tua infância! Vai já a correr ter com o Zé! Mas, para além de teres cuidado, sabes que tens de estar de volta a tempo de tomares um bom banho e fazeres os trabalhos de casa. Para lanche, vou fazer cuscuz para comermos com o mel de cana-de-açúcar que a tua avó trouxe."
A porta da cozinha fecha-se alegremente e lá vai ele a correr ter com o Zé.
Ai os toques que ele iria dar na bola nova que o pai do Manel tinha trazido da América!
- Maggs -
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O cuscuz, em Cabo Verde, é tradicionalmente confeccionado com farinha de milho e cozido a vapor num binde. O binde é feito de barro e tem a forma de um vaso com buracos na base, que é arredondada e por onde passa o vapor de água.
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